domingo, 21 de novembro de 2010

O que nos garante que o mundo não é apenas uma ilusão?

Eis uma ideia para os professores de filosofia da mesma escola aplicarem as suas faculdades críticas e funcionarem como uma comunidade de pares intelectualmente activos e verdadeiramente interessados na discussão dos problemas filosóficos. 

A ideia é a seguinte: cada professor escreve uma questão filosófica e um dos seus colegas responde numa folha a essa questão. Pretende-se, assim, que cada um enfrente o problema colocado por um dos seus colegas, sendo cada resposta o ponto de partida para uma boa discussão filosófica. Tudo isto pode e deve ser feito sem rede, isto é, sem ser necessário consultar bibliografia nem pedir ideias emprestadas a outros. Afinal, o professor de Filosofia deve estar sempre apto a pensar nessas coisas, mostrando o que é  pensar por si e apresentando simplesmente o resultado da sua reflexão. 

Essa foi, precisamente, uma das actividades realizadas pelo grupo de filosofia da ESMTG no dia internacional da filosofia. Eis a minha resposta à questão a que me coube responder.

E se o mundo não passasse de uma ilusão? E se nada existisse? O que é que nos garante que o mundo não é apenas uma ilusão? 
Eis uma resposta decepcionante, e talvez inesperada, às duas primeiras perguntas: se o mundo não passasse de uma ilusão, não passaria de uma ilusão; e se o mundo não existisse, não existiria. 
Bom, procurando ser um pouco mais construtivo, diria, por um lado, que se o mundo não passasse de uma ilusão, ficaríamos ainda com o problema aparentemente intratável de explicar a existência de tal ilusão e de compreender como poderia essa mesma ilusão ser algo que não faz parte do mundo. Por outro lado, se o mundo não existisse, não haveria quem perguntasse «E se o mundo não existisse?» Assim, para que estas mesmas perguntas façam sentido é preciso que o mundo exista. Ou, pelo menos, temos de pressupor tal coisa. 
Note-se que disse «pressupor» e não mais do que isso. O que me leva à terceira e, quanto a mim, mais interessante pergunta: o que nos garante que o mundo não é apenas uma ilusão? A minha resposta é que nada nos garante tal coisa. Isto se o mundo a que nos estamos aqui a referir for um mundo exterior e não o meu mundo interior ou mental. A este tenho acesso directo e não preciso de qualquer garantia extra. 
Até aqui creio estar muito bem acompanhado por um senhor escocês falecido há muito, chamado David Hume – se é que este senhor não passa de uma ilusão. Só que o senhor Hume acha que a falta de garantias nos conduz a uma espécie de comichão intelectual que não nos deixa fazer outra coisa senão coçar a cabeça. Mas para grandes males, grandes remédios, pelo que arrumou o assunto decidindo simplesmente fingir que não havia comichão. E é aqui que abandono a companhia do senhor Hume. 
O problema deste escocês foi ser demasiado exigente, pois achava que ter boas razões para acreditar que o mundo exterior existe equivalia a ter garantias disso. Mas ter boas razões para acreditar que P e ter a garantia de que P são coisas diferentes. 
Que garantias temos de que os fósseis com formas de peixe encontrados em locais distantes do mar não foram causados por peixes caídos do céu? A resposta é: nenhuma. E que garantia temos de que os locais onde foram encontrados os fósseis estivessem em tempos muito remotos debaixo do mar? A resposta continua a ser: nenhuma. Também aqui não temos qualquer garantia, mas não deixa de haver boas razões para acreditar nisso. Porquê? Ora, porque comparamos as explicações disponíveis para a existência dos fósseis com forma de peixe e esta é, de longe, mais satisfatória do que qualquer outra. 
Nunca podemos ter a garantia seja do que for, mas seria algo irracional ter melhores razões para acreditar que os fósseis vieram do mar do que o inverso e, apesar disso, não acreditar que vieram do mar por falta de garantias. Assim, temos também boas razões para acreditar que o mundo exterior existe. Podemos estar enganados? Claro que sim, mas temos boas razões para pensar que não.

8 comentários:

  1. E que "boas razões" o Aires tem para acreditar que o mundo exterior existe? Como sabe que não existe nenhum "Génio Maligno" a enganá-lo nas suas percepções sobre mundo exterior?

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  2. Domingos, porque há melhores razões para pensar que o tal génio não existe do que para pensar que existe. De resto, onde estaria esse tal génio que se diverte a enganar-me?

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  3. Não faço ideia! Porém, o ónus está do seu lado... o Aires disse: "Assim, temos também boas razões para acreditar que o mundo exterior existe". Portanto, tem que sustentar e fundamentar esta afirmação. Então, que razões são essas?

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  4. Domingos, há um tipo de argumento que é conhecido como argumento a favor da melhor escolha, ou abdução, segundo o qual não preciso de ter provas conclusivas a favor de P para estar justificado em acreditar que P. O que é preciso é avaliar comparativamente as teorias rivais e ver qual delas explica melhor o que precisa de ser explicado, neste caso, a nossa forte intuição (que sustenta todo o nosso sistema de crenças e que se manifesta até na nossa linguagem) de que há um mundo exterior. Ora, a existência real do mundo exterior explica muito melhor tal intuição do que a hipótese do génio maligno. A hipótese do génio maligno pressupõe, de resto, a existência do mundo exterior: o mundo onde esse génio se encontra. Daí a minha pergunta final do comentário anterior.

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  5. Os argumentos apresentados foram ótimos. Parabéns pela alusão deste ensaio e por todo o mais no blog. Abraço!

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  6. Então, "nossa forte intuição" é uma boa razão. Mas, como sabemos que não estamos a viver numa Matrix? Se vivermos numa matrix, então as nossas intuições são falsas (pois, pensamos que estamos a olhar para uma paisagem real quando efectivamente isso é apenas uma simulação de computador). As nossas "fortes intuições" podem aparecer como uma boa razão; mas, penso que primeiro é preciso justificar se são intuições verdadeiras.

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  7. Domingos, acho que estamos a regressar sempre ao mesmo ponto e não estás a levar em conta um aspecto importante referido por mim. Vejamos.

    - Temos uma forte intuição de que há um mundo exterior.
    - Mas o que explica tal intuição?
    - Bom, ou é explicada pela própria existência do mundo exterior, que causa as nossas percepções, ou há algo como um génio maligno que provoca em nós tais percepções.
    - Agora o que temos de fazer é comparar as duas explicações e ver qual das duas é melhor.
    - Por um lado, a existência do mundo exterior explica perfeitamente as nossas percepções, embora possamos estar enganados. Por outro lado, a hipótese do génio maligno explica, mas não satisfatoriamente, pois se houve um tal génio maligno, então há um mundo exterior, que é o mundo onde tal génio existe. Como vês, o génio maligno não consegue excluir a ideia de há mesmo um mundo exterior.

    Isto garante-nos que o mundo exterior existe? Claro que não, como escrevi no meu texto. Apenas mostra que a ideia de que o mundo exterior existe é mais plausível ou mais razoável do que a ideia de que estamos a ser sistematicamente enganados por um génio maligno.

    Haveria outras razões, mas acho que esta chega e é nesta que tenho insistido.

    Em suma, para me mostrares que a hipótese do génio maligno é tão boa como a da existência do mundo exterior, tens de me explicar muito bem a que mundo pertence esse tal génio. Espero ter sido agora mais claro.

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