domingo, 10 de abril de 2016

Livre-arbítrio: uma útil e promissora ilusão?


Uma vez que a mente individual não pode ser inteiramente descrita por si mesma, ou por qualquer outro investigador separado, o «eu» — a famosa estrela convidada nos cenários da consciência — ela poderá continuar a acreditar arrebatadamente na sua independência e no livre-arbítrio. E essa é uma circunstância feliz do ponto de vista darwiniano. A confiança no livre-arbítrio é uma adaptação biológica. Sem ela, a mente, na melhor das hipóteses uma frágil e sombria janela para o mundo real, seria atormentada pelo fatalismo. À semelhança de um prisioneiro, condenado a permanecer toda a vida em solitária reclusão, privado de qualquer liberdade para explorar e à míngua de qualquer surpresa, a mente deteriorar-se-ia.
Então, o livre-arbítrio existe? Sim, se não existe enquanto verdadeira realidade, existe pelo menos no sentido operacional necessário para a sanidade, e, portanto, para a perpetuação da espécie humana. 
                         O Sentido da Vida Humana (Clube do Autor Editora), pp. 180-181
Este argumento de Edward O. Wilson é muito semelhante ao de Kant a favor da imortalidade da alma. Com uma diferença importante: este de Wilson visa estabelecer a inevitabilidade prática da crença no livre-arbítrio, ao passo que o de Kant visa estabelecer não tanto a inevitabilidade prática da crença na imortalidade da alma mas a da própria verdade dessa crença.

sábado, 2 de abril de 2016

Há sentimentos não sentidos?

Ponte Fantasma (Rio Arade)

A pergunta deste post é uma reformulação algo atrevida do título da conferência Há dores não sentidas? proferida por João Branquinho no colóquio O Que é a Consciência? que decorreu na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em Novembro do ano passado e que, graças às Edições Passante de Lbtavares, tive agora a oportunidade de ver (com um agradecimento ao João Carlos Silva pela partilha no FB).

É sempre muito estimulante ouvir João Branquinho porque, entre outras coisas importantes, nos obriga a pensar e a repensar melhor sobre algumas das nossas mais estáveis intuições filosóficas. Não tenho dúvidas de que o panorama filosófico nacional tem melhorado muito nos últimos vinte anos e que isso se deve principalmente ao trabalho, deliberadamente discreto mas eficaz, de João Branquinho — seja directamente, pelos resultados da sua própria investigação, seja indirectamente, pelos reflexos disso nos que com ele aprenderam e acabaram por enveredar também pela investigação filosófica ou mesmo pelo efeito que o seu ensino tem tido no apuramento da qualidade da divulgação filosófica no nosso país.

Na sua conferência, JB responde afirmativa e, talvez, surpreendentemente à pergunta colocada: sim, há dores não sentidas. Se não me perdi na argumentação (e é bem possível que me tenha perdido em algum passo, pois podem-me ter escapado algumas das várias subtilezas argumentativas), parece-me que a estratégia de JB é essencialmente negativa e indirecta, podendo ser grosso modo resumida num Modus Tollens:  

1) Se não há dores não sentidas (como dores), então a tese da                    
    luminosidade é verdadeira.
2) Mas a tese da luminosidade é falsa.
3) Logo, não é o caso que não haja dores não sentidas (como dores).

Relativamente à premissa (1), JB explicou com suficiente detalhe que há várias interpretações para a antecedente da condicional, acrescentando que, para o que lhe interessa, ela tanto pode ser lida epistemicamente como trivialmente. Esclareceu também o significado da consequente da premissa, de modo que a tese da luminosidade (introduzida por Williamson, mas aplicada aqui ao caso da dor) pode ser genericamente descrita como a perspectiva de que o mundo da consciência fenoménica é epistemicamente transparente para o sujeito. Neste caso, trata-se da ideia de que os estados dolorosos de um dado sujeito são epistemicamente transparentes para o sujeito em causa, sem que nada permaneça na obscuridade. A tese da luminosidade subdivide-se, neste caso, em duas subteses: a) se eu tenho agora uma dor, estou em condições de saber que tenho agora uma dor, e b) se não tenho agora uma dor, estou em condições de saber que não tenho agora uma dor.

A parte principal da estratégia de JB é precisamente mostrar que ambas as teses anteriores são falsas e que, portanto a tese da luminosidade é falsa, ou seja, trata-se de justificar o que é afirmado na premissa (2), de cuja verdade o argumento depende crucialmente, pois a condicional da premissa (1) é tacitamente aceite por ambos os lados da disputa. Nessa justificação, JB serve-se não só de argumentação estritamente filosófica (por exemplo, sobre a diferença entre o que ocorre no domínio da consciência fenoménica e a categorizarão envolvida na consciência reflexiva acerca daquela), mas também se apoia em informação empírica relevante, nomeadamente da neurobiologia (por exemplo, ter uma dor no braço que é sentida não como dor mas como outra coisa, nomeadamente uma irritação cutânea).

A conclusão, apesar de se seguir das premissas e de JB nos dar boas razões para pensarmos que elas são verdadeiras, não deixa de ser surpreendente para muitos de nós. Mas algo mais me deixou a pensar: será que a mesma estratégia seguida por JB se pode aplicar também a sentimentos, como a pena, o medo, o ciúme, a alegria ou a tristeza? Claro que JB não tinha isto em mente, mas foi para mim inevitável reformular a questão inicial, de modo a avaliar melhor o alcance dos argumentos apresentados. 

Num primeiro momento, pensei que a mesma estratégia não permitia concluir que há sentimentos não sentidos. Note-se que não está em causa que tenhamos certos sentimentos dos quais não nos damos conta quando os estamos a ter. Penso que isso não é sequer problemático, pois facilmente reconhecemos que podemos estar a sentir ciúme sem nos darmos conta disso. O que está em causa é se há sentimentos que nem sequer são sentidos: podemos estar tristes sem sentirmos a tristeza? Podemos estar com medo sem sentirmos o medo? Se há quem pense que é uma verdade necessária que não há dores não sentidas (a tese que, de resto, JB procura refutar), parece ainda mais plausível afirmar que é uma verdade necessária que não há sentimentos não sentidos. Facilmente somos tentados a pensar que é contraditório afirmar que há sentimentos não sentidos. 

Mas, pensando melhor, talvez a resposta de JB funcione igualmente (tenho de rever a conferência com mais atenção e de pensar melhor nisto tudo) se falarmos de sentimentos em vez de dores. Até porque se as sensações, como a sensação de dor, envolvem algo mais do que uma dada fenomenologia (envolvem elementos cognitivos ou algo próximo disso como, por exemplo, um foco de atenção), isso é ainda mais claro no caso dos sentimentos, cuja componente cognitiva plausivelmente chega a incluir atitudes proposicionais como crenças e desejos: é improvável que alguém sinta medo sem acreditar que corre perigo ou que está sob ameaça de alguém. Assim, se a tese da luminosidade é descartada com base na ideia de que saber que tenho agora uma dor envolve mais do que a mera consciência fenoménica da dor, o mesmo se aplica, por maioria de razão, ao caso dos sentimentos. Neste caso, posso até conceder que haja uma total transparência fenoménica sem que tal implique que, se estou agora a sentir medo, então estou em condições de saber agora isso. No caso dos sentimentos, a componente fenoménica é mais claramente apenas uma condição necessária mas não suficiente, sendo mesmo provável que diferentes sentimentos partilhem o mesmo tipo de fenomenologia: por exemplo, os sentimentos de euforia e de exultação talvez se distingam mais pela componente cognitiva envolvida do que pela sua fenomenologia. 

Já o poeta, esse grande fingidor, tinha dito que podemos sentir as dores que não temos. JB acrescenta que também podemos não sentir as dores que temos. E agora parece que até podemos não sentir os sentimentos que temos.

Estranho, agora que cheguei ao fim do post, fico com a sensação de que algo correu mal no meu raciocínio. Será?

segunda-feira, 21 de março de 2016

Uma língua metafisicamente desorientada?

Ria Formosa, foto de Aires Almeida

Será que velha e persistente distinção aristotélica entre as diferentes categorias do ser, mais precisamente entre substância e qualidade, passou definitivamente à história? A avaliar pelo que se ouve e se lê nos órgãos de comunicação social portugueses, parece que sim. De acordo com uma longa tradição iniciada por Aristóteles, as qualidades podem ser predicadas das substâncias ao passo que as substâncias não podem ser predicadas de seja o que for. É nessa distinção metafísica que assenta a distinção linguística entre substantivos (para as substâncias) e adjectivos (para as qualidades). Mas quem ainda não ouviu ou leu frases como as seguintes?

1. Os populares sairam à rua em protesto contra o encerramento do centro de saúde.

2. Os alunos precisam de adquirir os instrumentos para uma correcta interpretação do real.

3. Há pessoas que dedicam toda a sua vida à descoberta do belo.

4. O que a testemunha afirmou é verdade.

Será descabido ficar incomodado com tão desleixado uso da língua portuguesa? O que os exemplos anteriores mostram é uma confusão básica entre substantivos e adjectivos. Os termos "popular", "real", "belo", que são adjectivos (qualidades que as substâncias podem ter), funcionam aqui como substantivos, ao passo que "verdade" é um substantivo, mas usado na frase (4) como adjectivo. Quer dizer, substantivam-se os adjectivos e transformam-se substantivos em adjectivos, o que é uma boa maneira de lançar a confusão.

Claro que uma certa maleabilidade da língua é algo desejável e, nestes casos, poderia haver até boas razões para isso. Só que não se vê quais são, a não ser o desejo dos respectivos falantes mostrarem que são criativos, dando assim ares de sofisticação intelectual (pena é ser-se tão previsivelmente criativo). Imagine-se alguém que diga simplesmente:

1'. As pessoas sairam (a população saiu) à rua em protesto contra o encerramento do centro de saúde.

2. Os alunos precisam de adquirir os instrumentos para uma correcta interpretação da realidade.

3. Há pessoas que dedicam toda a sua vida à descoberta da beleza.

4. O que a testemunha afirmou é verdadeiro.

Qual a desvantagem de falar assim? As vantagens são óbvias.

Há quem diga que a língua portuguesa não é suficientemente refinada para as subtilezas do discurso filosófico. Mas os exemplos anteriores não são culpa da língua portuguesa, pois esta permite, como se viu, exprimir as ideias pretendidas de forma simples e rigorosa. 

Se uma língua serve para descrever com o maior rigor possível o que há e como é isso, então é no mínimo desejável que ela não seja metafisicamente confusa. Só que, a avaliar pelos exemplos anteriores, os falantes da língua portuguesa parecem estar-se nas tintas para a metafísica (e nem vale a pena falar da substituição do substantivo feminino "beleza" pelo pomposo e machista "belo"). 

quarta-feira, 16 de março de 2016

O mistério do bilhete de identidade resolvido

Há dias tive o prazer de conhecer pessoalmente o matemático português Jorge Buescu, com quem já tinha contactado antes por email e cujos livros de divulgação científica li e continuo a reler sempre com entusiasmo. Ainda me lembro da descoberta que foi o seu primeiro livro, intitulado O Mistério do Bilhete de Identidade e Outras Histórias (Gradiva).

Entre várias coisas de que falámos, tenho pena por não me ter ocorrido contar-lhe uma história real passada comigo na cidade do Funchal. É uma história em que só não acabei por sair esmurrado graças ao tal mistério do bilhete de identidade.

Jorge Buescu, no seu livro, começa assim:

Com grande probabilidade, o leitor terá já assistido, no meio de um jantar com amigos, à seguinte discussão. A certa altura alguém pronuncia-se sobre o algarismo suplementar que os bilhetes de identidade passaram a ter de há uns anos para cá mais ou menos nos seguintes termos: «O algarismo suplementar que se segue ao número do BI indica o número de pessoas em Portugal que têm um nome exactamente igual ao do portador do BI.»

Ora, como disse atrás, foi graças a este algarismo que, há talvez mais de dez anos (ainda não havia o novo cartão de cidadão electrónico), me livrei de uns murros quase certos.

Estava sozinho no Funchal, tinha acabado de anoitecer e procurei, perto do Mercado dos Lavradores, um restaurante que alguém me tinha recomendado vivamente para jantar. Era o minúsculo, mas excelente, Restaurante Jaquet. Já não me lembro muito bem, mas não haveria no restaurante mais de 4 mesas, muito próximas entre si, por onde o casal de irmãos cozinheiros ia passando e deixando nos pratos umas lapas, uns caramujos e outras iguarias que, ainda há não muito tempo, deviam estar no mar. Sentei-me na única mesa disponível.

Num dos meus flancos, em duas mesas juntas, estava um grupo muito animado. Dois ou três deles estavam já bem bebidos, tal era o ar festivo. Depois de, instintivamente, eu ter virado várias vezes a cabeça em direcção ao grupo, um homem forte e alto levantou-se da mesa e, discretamente cambaleante, aproximou-se de mim com ar ameaçador. Deu-se o seguinte diálogo.

ELE — Ouça lá, por que razão está sempre a virar-se e a olhar para onde não é chamado? Meta-se na sua vida, se não se quer aleijar.
EU — Calma, não leve a mal, mas faço-o por instinto...
ELE — Pare lá com isso, senão trato de lhe meter o instinto num sítio que eu cá sei. Não o volto a avisar — acrescentou, de dedo em riste.
EU — Desculpe, mas é inevitável, pois estão sempre a chamar pelo Aires e quando se fala no Aires eu penso sempre que é para mim. Não conheço muitos, além de mim...
ELE — O quê, você chama-se Aires?
EU — Sim!
ELE — Nome próprio ou de família?
EU — Nome próprio.
ELE — Dê cá uma abraço, homem! Só somos cinco no país — diz de braços abertos — e logo venho encontrar aqui um! Mais um copo para este Aires — pede ele, virando-se para os seus amigos. — Quem tem de pedir desculpa sou, eu, caro Aires!
EU — Não há problema. Mas como sabe que só somos cinco?
ELE — Veja — foi à mesa e trouxe a carteira de onde sacou o BI —, está aqui o número 5. Sabe o que quer dizer? Que somos cinco no país inteiro! Somos como os diamantes, homem, uma verdadeira raridade.
EU — Bom, tem a certeza? Olhe que eu próprio conheço mais três. Sendo assim, só me falta conhecer um...
ELE — Nada disso! Mas... espere aí, você é Aires com "i" ou com "y"?
EU — Com "i"!
ELE — Ora, aí está. Há um ou outro mais, mas são Ayres, com "y", entende?
EU — Então e o resto do nome? Não estará a pensar em pessoas com o nome completo exactamente igual?
ELE — Pá, isso agora não interessa para nada — atalhou, com uma animação própria de quem já tinha bebido uns copos. — No nosso caso a raridade vem só do nome "Aires". Mostre-me lá o seu BI!
EU — Ok, aqui tem.
ELE — Aires... tal e tal... Rebelo Almeida... pois, cá está, os outros são nomes banais, como carradas de gente por aí. Acredite, homem, o que interessa é o "Aires".
EU — Mas olhe que o meu BI tem o algarismo 7 e não, como o seu, um 5 — insisti eu, mas já com alguma pena de o decepcionar.
ELE — O quê? Ah, pois... bom, eu devo ter renovado o BI depois de si e... entretanto devem ter morrido dois, coitados. Vamos mas é comemorar, homem! O que bebe? Escolha à vontade que eu pago.
EU — Ah, não é preciso, eu tenho aqui o meu copo cheio.
ELE — Ok, vamos brindar. Já agora, de onde vem você? Eu venho da cidade de grandes artistas, que fazem arte da boa com porcelana: venho das Caldas. — Tirou um cartão da carteira e deu-mo. — Sou médico ortopedista. 
EU — Bom, temos mais uma coisa em comum! Também sou de uma terra de artistas, só que os da minha não usavam porcelana, pois ainda nem sequer tinha sido inventada: sou de Foz Côa. Mas venho do Algarve.
ELE — Aqui tem aí o meu cartão. Quando for às Caldas, já sabe onde me encontrar. Até pode ir com uma perna partida, que eu trato-lhe dela com todo o gosto — gracejou. Mas não vá a pé — riram-se todos animadamente, já levantados e com os copos nas mãos.

Passado não muito tempo parti um braço a jogar futebol. Lembrei-me dele, mas nem pensar procurá-lo. Quem sabe se entretanto não leu o livro de Jorge Buescu e não acabou decepcionado com a verdadeira resposta para o mistério do bilhete de identidade.

terça-feira, 15 de março de 2016

HP, o inventor da Terra Gémea

Hilary Putnam em Lisboa, com a sua mulher Ruth Anna e os filósofos Charles Travis e João Branquinho

Morreu há dois dias (13 de Março de 2016) Hilary Putnam, um dos mais importantes filósofos dos últimos 50 anos. Putnam, nascido em Chicago em 1926, foi também um eminente matemático, disciplina que ensinou na Universidade de Princeton, e deu ainda importantes contributos para a teoria da computabilidade. As suas principais influências filosóficas encontram-se, segundo ele próprio (veja-se o seu autorretrato filosófico na entrada "Putnam" do excelente Dicionário de Filosofia, dirigido por Thomas Mautner, com tradução portuguesa nas Edições 70), em Quine, Reichenbach, Wittgenstein e Dewey, mas a quantidade de filósofos que continuam a ser influenciados por ele é extensa. Era também conhecido pelo seu activismo político e pelas suas ideias progressistas de esquerda, sobretudo quando ensinou na Universidade de Harvard, nos anos 60 e 70 do século passado, tendo-se manifestado contra a guerra do Vietname e a favor dos direitos civis nos EUA. 

Como filósofo, além de se tornar famoso por mudar frequentemente de opinião, deixou um enorme legado que vai da filosofia da linguagem à filosofia da matemática, passando pela filosofia da mente, pela epistemologia, pela filosofia da ciência, pela metafísica e, mais recentemente, pela metafilosofia, tendo sido galardoado em 2011 com o Prémio Schock (uma espécie de primo Nobel da filosofia, atribuído de dois em dois anos).  

Em filosofia da mente, foi dos primeiros a defender o funcionalismo. Teoria a que mais tarde se veio a opor por, como ele próprio escreveu, «conter demasiada ficção científica». Em filosofia da matemática defendeu, juntamente com Quine, e com base em pressupostos naturalistas, uma forma de realismo matemático. Defendeu ainda que os métodos matemáticos não consistem exclusivamente em demonstrações lógicas, havendo lugar para metodologias quase-empíricas. Em metafísica foi um defensor do realismo metafísico, que veio a abandonar em favor do «realismo interno», que também veio a abandonar. Contudo, sempre advogou uma espécie de realismo científico. Foi também um crítico da distinção facto-valor e em Razão, Verdade e História (1981) apresentou o célebre argumento do cérebro numa cuba, que muitos têm interpretado como uma refutação de argumentos cépticos inspirados na célebre hipótese cartesiana do génio maligno, mas que Putnam usa com um alcance diferente, mais precisamente para mostrar que o realismo metafísico é improcedente. Todavia, e mais uma vez, Putnam acabou mais tarde por abandonar esta ideia. Mais recentemente, Putnam começou a aproximar-se do pragmatismo de Dewey e interessou-se sobretudo por questões éticas e sociais, insistindo na «crítica do efeito nocivo das ideias positivistas sobre a ciência da economia».

Uma das áreas para que provavelmente Putnam mais contribuiu de forma duradoura foi a filosofia da linguagem, ao propor, juntamente com Kripke, a chamada teoria causal da referência, em oposição às tradicionais teorias descritivistas. Kripke começou por desenvolver esta teoria a propósito dos nomes próprios, mas Putnam alargou-a aos nomes comuns (ou termos para espécies naturais), defendendo o externismo (ou externalismo) semântico, de acordo com o qual os significados de termos para espécies naturais não estão no cérebro, antes dependem crucialmente das nossas interacções com o mundo exterior. Foi no âmbito dessa defesa que inventou a célebre experiência da Terra Gémea, que consiste resumidamente no seguinte:

Imagine-se um planeta distante, espantosamente semelhante à Terra. Esse planeta é igual ao nosso mesmo nos mais pequenos detalhes. De tal modo que lá, como cá, há pessoas que falam uma língua chamada português e vivem num país chamado Portugal. Chamemos Terra Gémea a esse planeta. A Terra Gémea é também constituída na sua maior parte por uma substância incolor e inodora a que eles chamam «água» e que existe nos seus oceanos, lagos e rios. É também aquilo que cai das nuvens quando chove e que serve para as pessoas se lavarem, para cozinharem os alimentos e para beberem quando têm sede. Há, porém, uma diferença (a única que existe entre os dois planetas): aquilo a que eles chamam «água» tem uma estrutura química complexa, mas que podemos abreviar com a fórmula XYZ, ao passo que a estrutura química daquilo a que chamamos «água» na Terra é, como se sabe, H2O. 

A pergunta que Putnam nos convida a fazer é a seguinte: será que o termo «água» quando usado pelos falantes de português da Terra Gémea tem o mesmo significado que a palavra «água» quando usada pelos falantes de português na Terra? A resposta é negativa.

É certo que a intensão de «água» na Terra Gémea e a intensão de «água» na Terra são as mesmas, pois os falantes associam ao termo exactamente as mesmas descrições («o líquido incolor, inodoro, que existe nos rios, que serve para beber, etc.»). E visto que as propriedades fenomenológicas da água na Terra e da água na Terra Gémea são idênticas, também os habitantes de ambos os planetas possuem os mesmos estados mentais acerca desse termo. Mas «água» na Terra refere H2O, ao passo que na Terra Gémea refere XYZ. Isto quer dizer que a tese de que às mesmas intensões correspondem as mesmas extensões é falsa e que os estados psicológicos não são suficientes para fixar a referência. Logo, os significados não estão na cabeça.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Falar cantando ou cantar falando?

Não faço a mais pequena ideia de qual seja o significado dos poemas de Edith Sitwell que fazem parte de Façade. Também não consigo dizer se a canadiana Barbara Hannigan está aqui a cantar ou se está simplesmente a ler os poemas de forma expressiva. E, como seria de esperar, também não sei se a música de William Walton capta adequadamente o sentido das palavras de Sitwell. Mas sei que me soa tudo de forma estranhamente cativante. Será que era algo do género que Clive Bell e Roger Fry tinham em mente (a propósito, Edith Sitwell foi várias vezes retratada pelo pincel de Fry) quando falavam da emoção estética causada pela forma significante? Será que o significado das palavras de Façade é irrelevante e apenas é esteticamente significativo o modo como as formas sonoras se combinam e organizam?


«A componente representacional de uma obra de arte pode ser ou não nociva, mas é sempre irrelevante. Para apreciarmos uma obra de arte não é necessário trazermos connosco nenhum elemento da vida, nenhum conhecimento das suas ideias ou questões, nenhuma familiaridade com as suas emoções. A arte transporta-nos do mundo da actividade humana para um mundo de exaltação estética. Por instantes alheamo-nos dos interesses humanos; suspendem-se as nossas memórias e expectativas, somos elevados acima do fluxo da vida. O matemático puro, absorto nos seus estudos, conhece um estado mental semelhante, se não mesmo idêntico», escreve Clive Bell no seu livro Arte.

Será Façade, uma obra recebida de forma pouco consensual quando estreou em 1922, uma boa ilustração da perspectiva de Bell e Fry?

Para quem preferir uma interpretação com uma voz mais familiar, sugiro o disco da DECCA, com Jeremy Irons e direcção da orquestra de Riccardo Chailly (a imagem da capa deste disco é provavelmente uma alusão à apresentação de estreia da obra, em que Sitwell leu os seus poemas com um megafone, escondida atrás do palco).  


sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Definiófobos de todo o mundo, acautelai-vos!

A Cigarra Filosófica de Bernard Suits desafiando os definiófobos, em particular os wittgensteinianos: "jogar um jogo é uma tentativa voluntária de superar obstáculos desnecessários".



Silva: Mas se queres ir para C, por que diabos defendes uma regra que te impede de seguir a rota mais rápida e conveniente?
Júnior: Ah, mas repara que não tenho qualquer interesse particular em estar em C. Não é esse o meu propósito, excepto de um modo secundário. O meu propósito fundamental é mais complexo. Trata-se de “ir de A para C sem passar por B”. E não tenho como realizar esse propósito lá muito bem se passar por B, certo?
S: Mas por que razão queres fazer isso?
J: Quero fazê-lo antes que o Rebelo o faça, entendes?
S: Não, não entendo. Isso não explica coisa alguma. Por que haveria o Rebelo, seja ele quem for, de querer fazer isso? Presumo que me dirás que ele, como tu, tem apenas um interesse secundário em estar de todo em C.
J: É isso mesmo.
S: Bom, se nenhum de vós quer realmente estar em C, então que diferença poderia fazer o facto de um ou outro chegar lá primeiro? E por que razão, pelo amor de Deus, haveriam de evitar B?
J: Deixa-me fazer-te uma pergunta. Por que razão queres ir para C?
S: Porque vai haver um bom concerto em C, e quero assistir a esse concerto.
J: Porquê?
S: Porque gosto de concertos, evidentemente. Não será essa uma boa razão?
J: Uma das melhores que há. E eu gosto de, entre outras coisas, tentar chegar a C a partir de A sem passar por B antes que o Rebelo o faça.
S: Bom, eu não. Portanto, por que razão me haveriam de dizer que não posso passar por B?
J: Oh, estou a ver. Devem ter pensado que estás na corrida.
S: Na quê?

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Estrelas que brilham depois de extintas

Blackstar foi o obituário musical que a mais brilhante rockstar de sempre criou para anunciar o seu próprio apagamento. Tal como havia feito há mais de quatro décadas com a revelação da morte metafórica do seu alter ego artístico — Ziggy Stradust, a rockstar alienígena —, David Bowie regressou artisticamente ao sempre difícil tema da despedida. Só, que desta vez, tratou-se da mais difícil de todas: a irrevogável. Uma despedida assim é caso único na história da música rock.


David Bowie é frequentemente referido como alguém que desafiou estereótipos, preconceitos e convenções sociais, contribuindo como poucos para a emancipação da então emergente cultura popular urbana, que tinha o rock and roll como principal elemento de afirmação. E não deixa de ser curioso que tenha sido um verdadeiro catalisador de influências artísticas como Bowie — ele mesmo abraçou influências tão diferentes como a mímica, o teatro de vaudeville, o jazz, os musicais, o cinema, a literatura e as artes plásticas — a mergulhar no universo do rock para lhe oferecer o seu primeiro, mais vivo e mais honesto auto-retrato. Ao dar vida, tanto em disco como nos palcos, a personagens como Ziggy Stardust e os Spiders From Mars — uma rockstar andrógina que veio de outro planeta com a sua banda e que acabou por ser vítima dos excessos do seu próprio sucesso —, conferiu ao rock system a importância e o estatuto que legitimam a auto-referencialidade.


É certo que os Mothers of Invention de Frank Zappa já olhavam por vezes ironicamente para a cultura e a iconografia rock de que eles próprios faziam parte. Só que, diferentemente da perspetiva na primeira pessoa de Bowie, a ironia de Zappa mostra um olhar distanciado, típico da perspectiva na terceira pessoa. No caso de Bowie, é o rock system a olhar-se a partir de dentro, sem qualquer intenção irónica. Por isso se tornava difícil destrinçar se era Bowie ou se era Ziggy a manifestar-se. A personagem confundiu-se a tal ponto com a pessoa que lhe deu corpo, que esta teve de declarar publicamente a morte da personagem para resgatar a sua identidade. É por isso que a música de Bowie da fase Ziggy Stardust soa tão poderosa, desesperada e paradoxalmente autêntica. Parece que Bowie está, sem o saber, a ilustrar o que Fernando Pessoa exprimiu na sua Autopsicografia. Apesar de, ao vestir a pele e a alma de Ziggy, o artista estar a fingir, o fingimento cola-se com tal perfeição ao fingidor a ponto de este sentir o fingimento como dolorosa realidade. Foi manifestamente por isso, que depois da morte de Ziggy, Bowie se tornou uma pessoa diferente e a sua música mudou também de tom. Até a banda Spiders From Mars foi despedida e Bowie não voltou a tocar com ela. Foi por mudar várias vezes de pele que alguns lhe chamaram camaleão. Mas as peles de Bowie são mais parecidas aos heterónimos de Pessoa do que à aparência do camaleão, pois as diferentes peles de Bowie correspondem também a personalidades artísticas completamente diferentes. Bowie não muda só por fora mas por dentro também.

Ainda assim, tudo isso pode ser musicalmente desinteressante. O que importa mesmo é se a música que acompanha tais personagens vale realmente a pena ser ouvida. Ora, é acima de tudo como músico que Bowie merece toda a atenção.

Não devia haver qualquer dúvida que, sem David Bowie, a história da música rock teria sido muito diferente. E muitíssimo mais pobre. Poucas figuras foram individualmente tão marcantes para a história da música rock como Bowie. Talvez só Bob Dylan e Frank Zappa tenham individualmente uma importância equiparável à de Bowie. Nem Elvis Presley, que nunca se aproximou sequer da criatividade e da sofisticação musical de Bowie, nem Jimi Hendrix, cujo génio foi quase todo aplicado à guitarra, nem Jim Morrison, que foi sobretudo a voz carismática da criatividade colectiva dos Doors, são casos comparáveis. Lennon e McCartney, por sua vez, estão muitíssimo longe de ser individualmente o que foram como dupla genial. E o mesmo pode ser dito de outras duplas de peso como Jagger e Richards, Simon e Garfunkel, Page e Plant ou Gilmour e Waters.

Sem dúvida que numa carreira tão longa e tão musicalmente diversificada como a de Bowie, é possível encontrar períodos inteiros de música desinteressante. Foi o que aconteceu durante os anos 80 e boa parte dos 90 do século passado, em que Bowie precisou de ganhar a vida e optou pelo caminho mais curto. Não vou a ponto de dizer que sucessos como Let's Dance, Under Pressure, Dancing in the Streets, Modern Love, China Girl, Absolute Beginners ou Blue Jean são deploráveis. Mesmo em canções banais como estas há um toque especial — que mais não seja a voz única e inconfundível de Bowie —, mas o mundo não ficaria mais pobre sem canções como estas.

Para uma correta avaliação da importância musical de Bowie, é preciso ter em conta que houve um Bowie roqueiro (The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spiders From Mars), um Bowie esteta (Hunky Dory), um Bowie progressivo (Space Oddity), um Bowie jazzy (Aladin Sane), um Bowie bluesy (Diamond Dogs) um Bowie funky e soul (Young Americans), um Bowie electrónico, experimental e ambiental (Low, Heroes, Lodger) um Bowie metálico (The Man Who Sold the World), um Bowie new wave (Scary Monsters) e, claro, também um Bowie comercial (Let's Dance, Tonight). Bowie é tudo isso, por vezes misturado, mas sempre à sua maneira, sem nunca se deixar aprisionar por qualquer desses géneros. Não vale, por isso, a pena procurar nele um exemplar puro de qualquer desses sub-géneros.

Mas onde procurar o melhor, e como evitar o pior Bowie? Penso que o melhor está todo nos anos 70  — de The Man Who Sold the World a Scary Monsters, este já gravado no ano de 1980 — e que os anos 80 e parte dos 90 são de evitar. Só já na recta final da sua vida, Bowie volta a fazer música à sua própria altura, em particular o último Blackstar.

Parece-me adequado encarar os seus discos anteriores a 1980 como uma sucessão de trilogias. Os seus três primeiros álbuns — David Bowie, Space Oddity e The Man Who Sold the World — têm algumas boas canções, em especial os dois últimos, mas são apenas um tímido prenúncio da explosão criativa que haveria de se revelar na fantástica trilogia seguinte, constituída por Hunky Dory, The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spiders From Mars e Aladdin Sane. Os dois primeiros são, quanto a mim, os melhores álbuns de Bowie e estão entre os melhores discos da história da música rock.


Hunky Dory está recheado de belíssimas canções, com melodias incomuns mas memoráveis. Entre elas destacam-se Life on Mars, com as suas linhas melódicas irresistivelmente ascendentes, os arranjos elegantes do guitarrista Mick Ronson — vejam-se não apenas as cordas mas também os sopros que por vezes se assomam discretamente com a suave batida da tarola aveludada em eco a marcar o compasso —, o magistral piano de Rick Wakeman e a voz lírica de Bowie. Changes, por sua vez, parece tirada de um musical, com Bowie a cantar ora como se fosse um narrador em palco ora como actor. É, de resto, curioso verificar como já aqui Bowie revela o seu fascínio pelas múltiplas personalidades. Mas há ainda a estranhamente tocante Quicksand, em que Bowie confessa, com uma honestidade surpreendente, a sua perigosa proximidade das areias movediças formadas por uma mistura de ideias esotéricas da Aurora Dourada com um cepticismo irracionalista e uma altivez profética nietzscheana. Salva-se a corajosa confissão da sua atracção pelo abismo a que, no fundo, tenta resistir: Don't believe in yourself, don't deceive with belief / Knowledge comes with death's release, canta ele no resignado e encantador refrão. Expôr cruamente tão desprezíveis fraquezas — sobretudo quando apresentadas como tal — não é para qualquer um. Há também The Bewlay Brothers, uma misteriosa balada entre o folk e o rock progressivo, com uma letra estranhíssima, alegadamente um repositório de memórias e de imagens soltas de uma infância partilhada com o seu muito querido meio-irmão mais velho, que padecia de esquizofrenia e que viria anos mais tarde a atirar-se mortalmente da janela da instituição em que estava internado. E ainda sobram o brilhante trio de piano, guitarra eléctrica e voz de Eigth Line Poem, a eloquente pregação musical de Oh! You Pretty Things, em que mais uma vez dá voz à ideia nietzscheana de um futuro homem superior.


Depois de um disco assim era difícil esperar ainda melhor, mas foi isso mesmo que aconteceu com The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spiders From Mars, uma sucessão de canções tão diferentes mas complementares entre si. Apesar da aparente simplicidade de cada canção, o álbum é um verdadeiro cardápio do melhor que o rock tem para oferecer: a poderosa e incisiva guitarra eléctrica de Ronson, que energicamente irrompe apenas quando é necessário (Soul Love, Moonage Daydream, Ziggy Stardust), por vezes em contraste com a aveludada guitarra acústica de doze cordas de Bowie (Starman, Rock 'n' Roll Suicide); o sax esporádico e insinuante de Bowie (Soul Love); o piano imponente e solene (Five Years, Lady Stardust), tocado ora por Bowie ora por Ronson; os brilhantes arranjos de Ronson, que conferem a algumas canções uma discreta envolvência orquestral e um lirismo invulgares (Five Years, Moonage Daydream, Starman, Rock 'n' Roll Suicide). E acima disto tudo está a voz de Bowie com os seus graves profundos e os seus agudos fulgurantes, constantemente entre o introspectivo e o descarado, entre o épico e o lírico. Como se diz na contracapa do disco, é para ser ouvido com o volume no máximo. Não há que ter receio de o som sair empastado, pois cada instrumento continua ali bem definido. Apenas se passa a sentir melhor todo o poder e expressividade desta música. Em minha opinião é um dos melhores discos rock de sempre.

Dificilmente o disco seguinte não deixaria algo a desejar. Mesmo não estando à altura dos dois anteriores, Aladdin Sane tem boa música. Na verdade percorre ainda os mesmos caminhos musicais que os anteriores, só que é menos focado e mais disperso. E também acrescenta um toque jazzístico aqui e ali, dado sobretudo pelo novo pianista Mike Garson e pela maior intervenção do sax de Bowie.  Há neste álbum um punhado de boas canções, embora nunca tão intensas como nos álbuns que o precedem. Entre elas conta-se Drive-In Saturday, a lembrar as paródias musicais de Zappa — os coros, por exemplo. Time, por sua vez, parece tirada de uma performance de cabaret e Lady Grinning Soul mostra, mais uma vez, o excelente cantor que Bowie é.

A trilogia seguinte é formada por Diamond Dogs, Young Americans e Station to Station. Isto sem contar com PinUps, um álbum de versões de canções que Bowie ouvia em meados dos anos 1960 (The Who, The Kinks, Pink Floyd, Them, The Yardbirds e outros), sem especial interesse. A música daqueles três discos é, para surpresa e decepção de muitos, substancialmente diferente do que Bowie tinha feito até então. Diamond Dogs é um álbum totalmente inspirado em 1984 de Orwell e pensado para encenação teatral. Musicalmente está muito próximo do rhythm 'n' blues dos Rolling Stones e tem um som mais americanizado do que qualquer outro disco anterior. Está longe do melhor Bowie e penso que é o menos interessante desta trilogia. O álbum seguinte, Young Americans, soa ainda mais americano. Desta vez Bowie surpreende tudo e todos com um disco de música funksoul. Mas é uma soul à maneira de Bowie. O próprio aplicou, com uma honestidade desarmante, o termo plastic soul para caracterizar o que se ouve neste disco. Seja como for, há no disco excelentes nacos de soul plástica como Right, Can You Hear Me e a canção que dá título ao álbum. O melhor desta fase americana encontra-se, contudo, em Station to Station, o último desta trilogia. Ainda se encontra lá a influência funksoul, mas incorpora agora um toque do chamado krautrock alemão. Muitos consideram-no um dos melhores discos de Bowie. Não penso o mesmo, mas reconheço que é um disco com momentos musicalmente inspirados. O próprio Bowie parece não encarar esta fase com grande saudade — diz ter sido dos períodos mais negros e autodestrutivos da sua vida — e os temas abordados nas letras são, de facto, de uma enorme desorientação pessoal e intelectual. Ainda assim, Word on a Wing, uma espécie de prece cristã, é uma das canções em que Bowie canta de forma mais espantosamente expressiva, a rivalizar com a versão de Wild is the Wing que encerra o mesmo disco. 


Em 1977 Bowie instalou-se em Berlim à procura um novo rumo para a sua música e também para a sua vida. Foi aí que, fortemente influenciado pelo som do experimentalismo electrónico alemão — sobretudo dos Neu! e dos Kraftwerk —, criou a trilogia formada por Low, Heroes e Lodger, que muitos consideram um verdadeiro renascimento artístico de Bowie. É difícil dizer qual deles o melhor, mas penso que Low se destaca ligeiramente dos outros. Dele fazem parte instrumentais tão enigmaticamente envolventes como Subterraneans e tão encantadoramente desoladores como Warszawa, em que Bowie combina a gravidade electrónica de fundo com elementos vocais de música folclórica polaca. Mesmo a ligeireza da pop electrónica de Sound and Vision revela uma elegância inesperada que não destoa do resto do disco. Em minha opinião, Low está no pódio dos três melhores álbuns de Bowie. 

Heroes é como que uma continuação do disco anterior e é também o nome da canção, escrita em parceria com Brian Eno, que se tornou uma espécie de hino triunfal ao amor audaz. De facto trata-se de uma das melodias mais simples que Bowie alguma vez cantou, mas que tem uma poderosa massa instrumental electrónica — comandada pelos sintetizadores de Eno e reforçada com os efeitos da guitarra de Robert Fripp e de Carlos Alomar — como que a empurrá-la irresistivelmente para uma espécie e auge libertador. Mas este sucesso de forma alguma devia obscurecer instrumentais como Moss Garden, com o seu toque de exotismo oriental. O terceiro álbum da trilogia, Lodger, mantém o nível do anterior. Mais uma vez Bowie combina deliciosamente a electrónica com elementos de world music, como se verifica em Yassassin — nesta canção é notória a influência dos alemães Can, em particular do seu álbum Flow Motion

A seguir ao período de Berlim, Bowie muda novamente de som com Scary Monsters (And Super Creeps). Trata-se de um álbum de canções com um som algo sujo e duro. Há quem considere que Bowie conseguiu, sem perder qualidade, compensar o relativo insucesso comercial dos três álbuns anteriores. Sem dúvida que teve bastante mais sucesso, mas não concordo que tenha mantido a qualidade. Apesar de não ser um mau disco, acaba por estar uns furos abaixo do melhor Bowie. Ainda assim, o álbum inclui Ashes to Ashes, uma das mais geniais canções de Bowie. Quem se der ao trabalho de tentar ouvir separadamente a voz e cada instrumento por si ficará surpreendido como daqueles esboços de sons desconexos Bowie construiu uma canção tão estranhamente original e, ao mesmo tempo, tão eficaz. Eis uma canção que não está ao alcance de qualquer estrela cadente do rock.  

Depois de Scary Monsters, Bowie voltou a surpreender. Para pior, desta vez. Mas isso não apaga o seu impressionante legado anterior. Até porque um dos méritos de Bowie foi o ter ido abastecer-se fora das margens do rock — as suas mais nítidas influências vêm da teatralidade das canções de Jacques Brel, da música de cabaret, dos musicais e da world music —, e combinar isso com o lado mais excêntrico e experimental do rock — Velvet Underground, Kraftwerk — trazendo tudo isso para o palco principal da música popular urbana dos últimos 50 anos.

Uma palavra: respeito!            

Deixo, para terminar, a minha lista pessoal das 33 melhores músicas de Bowie. De fora ficam ainda muitas canções excelentes. Talvez a lista fosse ligeiramente diferente se elaborada amanhã em vez de hoje. Ligeiramente!

33 Bowie (a lista no Spotify)

1. Space Oddity   (Space Oddity, 1969)
2. An Occasional Dream   (Space Oddity, 1969)
3. All the Madmen   (The Man Who Sold the World, 1970)
4. The Man Who Sold the World   (The Man Who Sold the World, 1970)
5. Changes   (Hunky Dory, 1971)
6. Life on Mars   (Hunky Dory, 1971)
7. Quicksand   (Hunky Dory, 1971)
8. The Bewlay Brothers   (Hunky Dory, 1971)
9. Soul Love   (The Rise and Fall of Ziggy Stardust and..., 1972)
10. Moonage Daydream   (The Rise and Fall of Ziggy Stardust and..., 1972)
11. Starman   (The Rise and Fall of Ziggy Stardust and..., 1972)
12. Lady Stardust   (The Rise and Fall of Ziggy Stardust and..., 1972)
13. Ziggy Stardust   (The Rise and Fall of Ziggy Stardust and..., 1972)
14. Rock 'n' Roll Suicide   (The Rise and Fall of Ziggy Stardust and..., 1972)
15. Drive-In Saturday   (Aladdin Sane, 1973)
16. Time   (Aladdin Sane, 1973)
17. Lady Grinning Soul   (Aladdin Sane, 1973)
18. Diamond Dogs   (Diamond Dogs, 1974)
19. Right   (Young Americans, 1975)
20. Can You Hear Me   (Young Americans, 1975)
21. Word on a Wing   (Station to Station, 1976)
22. Sound and Vision   (Low, 1977)
23. Warszawa   (Low, 1977)
24. Subterraneans   (Low, 1977)
25. Heroes   (Heroes, 1977)
26. Moss Garden   (Heroes, 1977)
27. Fantastic Voyage   (Lodger, 1979)
28. Yassassin   (Lodger, 1979)
29. Ashes to Ashes   (Scary Monsters, 1980)
30. Buddha of Suburbia   (Buddha of Suburbia, 1993)
31. Something in the Air   ('hours...', 1999)
32. Slip Away   (Heathen, 2002)
33. Lazarus   (Blackstar, 2016)

sábado, 9 de janeiro de 2016

Wagner, o prodigioso senhor dos anéis

É fácil detestar Wagner. Mas não é menos fácil idolatrá-lo. Talvez haja boas razões de ambos os lados.

Por um lado, a pessoa de Wagner tem aspectos detestáveis, como a ingratidão e, sobretudo, o seu declarado e persistente anti-semitismo. Além disso, embora arrojadas, as suas megalómanas concepções artísticas resultam, não raras vezes, em música aborrecida ou, como teria gracejado Rossini, em momentos encantadores perturbados por quartos de hora insuportáveis. E também é preciso ser um adepto do género para digerir aquele universo mitológico carregado de fadas e feiticeiros, poções e anéis mágicos, cavaleiros e espadas, cisnes e gnomos, grutas, deuses manhosos e santos medievais, cujas tropelias se desenrolam ao longo de óperas de quase quatro horas de duração.

Por outro lado, é indiscutível que Wagner foi um artista invulgarmente inspirado, criador de alguma da mais bela, expressiva e comovente música jamais composta. Foi também um compositor ousado, capaz de desbravar caminhos na música até então inexplorados: seja na riqueza das harmonias como na ampliação dos recursos orquestrais, nas luminosas e irresistíveis progressões melódicas ou nas transições entre temas musicais.

Vem isto a propósito de um dos últimos livros que li, precisamente sobre a vida e a obra de Wagner. Trata-se de um livro que comprei há anos quase só por curiosidade, até porque o preço era bastante convidativo (creio não ter chegado aos 15€) e vinha acompanhado por dois CD's da Naxos com música do compositor alemão. O livro foi publicado pela Bizâncio e o seu autor é o musicólogo e crítico musical inglês Stephen Jonhson, que eu desconhecia de todo. Comprei ainda mais dois livros desta coleção, um sobre Mahler e o outro sobre Beethoven (mas há mais: Mozart, Haydn, Dvorak e outros), dentro dos mesmos preços e também com dois CD's cada um.


As minhas expectativas eram relativamente baixas, imaginando que, à parte um ou outro pormenor interessante, pouco mais iria encontrar do que as banalidades habituais que tantas vezes se lêem em livros sobre a vida e a obra de grandes vultos da história da arte. Enfim, esperava pouco mais do que aquilo que se pode descobrir, por exemplo, numa breve pesquisa na Internet.

Não podia estar mais enganado, e a surpresa acabou por ser muito agradável. É um livro realmente informativo para quem conheça, como é o meu caso, pouco mais do que o essencial sobre a vida e a obra de Wagner.

O livro é informativo não tanto porque se limita a descrever os factos da vida do compositor e as características da sua obra, mas sobretudo porque tais factos são contextualizados de forma pertinente e esclarecedora, tanto em termos históricos e políticos, como artísticos e filosóficos. É, aliás, reconfortante verificar o sólido conhecimento, da parte do autor, das ideias de filósofos como Schopenhauer, cuja influência na estética wagneriana é devidamente ilustrada e que foi, de resto, enfaticamente assumida por Wagner, ao ponto de este compor a sua audaciosa ópera Tristão e Isolda com as ideias de Schopenhauer sempre em mente. Mas também as ideias artísticas e musicais de carácter mais técnico são elegantemente explicadas e exemplificadas (muitas vezes, remetendo para os CD's com excertos das obras de Wagner).

Uma boa maneira de avaliar um livro deste género é ver se ele é capaz de nos motivar para descobrir mais sobre o compositor e a sua música. Ora, foi isto mesmo que aconteceu comigo e me fez passar praticamente as duas últimas semanas a ouvir as principais óperas de Wagner. O que não é coisa pouca, dado que só para escutar o ciclo completo de O Anel do Nibelungo, com as suas quatro óperas, são precisas nada mais nada menos do que 15 horas (mas confesso que não resisti a saltar uma ou outra cena). O que é relevante é que a leitura da segunda parte do livro (que tem duas partes, a primeira das quais sobre a vida de Wagner e a segunda sobre a sua música) pode mesmo ajudar a ouvir as óperas de Wagner com uma melhor compreensão do que se ouve e, assim, proporcionar uma apreciação estética mais rica.

Outro aspecto a salientar é que o autor, Stephen Johnson, não cai no pecado fatal, típico em livros de divulgação deste género, de nos brindar com uma narrativa de pendor hagiográfico. Assim, em vez de incensar o artista herói imaculado, o autor não deixa de revelar os aspectos mais sombrios do carácter pessoal de Wagner, nem deixa de referir as opiniões mais críticas de alguns dos seus mais ilustres pares, como foi o caso de Debussy, que caracterizou a revolução wagneriana como «um belo ocaso confundido com uma aurora», ou de Charles Ives, que descreveu Wagner como «um bichano invertebrado e sensualista».

Pessoalmente, posso dizer que, depois de duas semanas exposto ao pathos musical wagneriano, acho dispensáveis muitas das ideias megalómanas acerca da ópera como arte total, até porque me limitei a ouvir música sem sequer entender a maior parte das palavras cantadas. E também me parece musicalmente irrelevante todo aquele prodigioso universo medievalista semelhante ao descrito nos livros de Tolkien. Talvez por isso nenhuma das quatro óperas do Anel esteja entre as minhas preferidas. Entre estas estão Lohengrin, Os Mestres Cantores de Nuremberga e Tristão e Isolda. Lohengrin porque é das que se consegue ouvir sem ter vontade de passar à frente e porque, nesta ópera, Wagner consegue aliar beleza e arrojo musical como talvez em nenhuma outra (o Prelúdio ao Acto I e o início do Acto III, incluindo o Prelúdio, são os melhores exemplos disso). Os Mestres Cantores de Nuremberga por ser a menos tipicamente wagneriana das suas óperas (a não ser no tamanho, pois é a mais longa de todas). Talvez por se tratar de uma ópera satírica, a música é mais solta e familiar. E, ao fim de cerca de quatro horas, descobrimos que a ópera acaba exactamente da forma empolgante como começou. Enfim, Tristão e Isolda por ser a musicalmente mais ousada, com harmonias surpreendentes, a roçar os limites da dissonância, e com momentos de uma enorme intensidade expressiva, como a da cena final em que Isolda morre de amor.  


sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Música ambulante

O hábito de ouvir música tranquilamente sentado em frente de um bom sistema de alta fidelidade parece cada vez mais um luxo reservado aos audiófilos praticantes. Mas também não é preciso ser audiófilo para dar a devida atenção à qualidade sonora da música que ouvimos. Felizmente, já há boas alternativas portáteis — e não demasiado dispendiosas— capazes de nos proporcionar uma audição musical com alguma qualidade.

Tudo o que precisamos é de uma boa fonte sonora e de uns bons auscultadores.

A fonte sonora depende, por sua vez, da qualidade do ficheiro áudio e, como é óbvio, do leitor que o reproduz. Dado que estamos a falar de suportes digitais, a qualidade do ficheiro depende sobretudo da sua taxa de compressão. A taxa de compressão padrão é de 128Kbps, mas o mais recomendável para uma boa qualidade sonora é uma taxa de compressão maior, digamos de 256Kbps (muitas gravações de CD's originais usam uma taxa de 320Kbps). Quanto aos leitores, já se encontram smartphones e leitores Mp3 com boa qualidade, como os mais recentes iPod, iPhone e outros.

Mas de nada serve ter um bom leitor e ficheiros de qualidade sem uns bons auscultadores. Claro que o inverso também se aplica: de nada serve ter uns auscultadores supra-sumo sem uma fonte sonora de qualidade. Gastar dinheiro apenas numa destas coisas é esbanjá-lo.

Em todo o caso, o mais difícil é mesmo escolher uns bons auscultadores, não só porque a variedade de oferta é imensa mas também porque depende do tipo de música que mais ouvimos e porque é, em parte, uma questão de gosto pessoal. Como já usei uns quantos auscultadores de qualidade muito variável, acho que tenho alguma experiência nessa matéria, pelo que atrevo-me a expor aqui o que aprendi com ela.

A primeira coisa que posso dizer é que nunca ouvi auscultadores minimamente aceitáveis abaixo dos 40€. Esses talvez sirvam bem para muitos outros fins, mas não são adequados para quem dá importância à qualidade do som. Para abreviar, irei aqui referir apenas auscultadores supra-aurais dobráveis, entre os 40€ e os 80€, que eu próprio já usei abundantemente e que considero excelentes, tendo em conta que se trata de auscultadores portáteis.

São os seguintes: Koss Porta Pro, que usei durante cerca de três anos; Sennheiser PX100, que usei durante outros três anos aproximadamente; AKG K451, que uso intensamente há cerca de uma semana (uma generosa prenda de Natal). Devo dizer que a crítica especializada também parece unânime quanto à excelência destes auscultadores, colocando-os geralmente a par de auscultadores que custam entre 150 e 200 Euros, quando não até mais.

Apesar de estar muito longe de ser um entendido na matéria, costumo ser suficientemente curioso e atrevido para fazer os meus próprios testes de amador. Claro que não pude compará-los directamente, pois os Koss e os Sennheiser já foram para reciclagem há muito. Mas se usarmos músicas que conhecemos bem, é possível fazer, ainda que de memória, algumas comparações. Assim, tenho ouvido insistentemente nos novos AKG três músicas muito diferentes entre si, que já tinha ouvido antes vezes sem conta: Pink Moon, de Nick Drake (na qual predominam os tons médios da guitarra e da voz tímida de Drake), Elevation, dos Television (uma espécie de tricot de guitarras eléctricas, com uma voz aguda e secção rítmica de baixo e bateria rica em pormenores), e o segundo andamento, com o Adágio da Sinfonia N.º 3 de Bruckner, dirigido por Sergiu Celibidache (pela riqueza orquestral). Enfim, trata-se de uma balada simples e introspectiva, de rock eléctrico e de música clássica, respectivamente.


Por norma, começo por ouvir cada uma das músicas com o volume de som a meio, prestando especial atenção ao equilíbrio entre os graves, os agudos e os médios. Tal como os hambúrgueres das cadeias de fast food são concebidos para agradar ao palato mais distraído, carregando com os inevitáveis sal e açúcar, também os auscultadores medíocres têm tendência para destacar os graves e os agudos em detrimento dos médios, o que fica bem mais barato e agrada a quem não tem paciência para subtilezas nem detalhes. Também dá para prestar atenção a aspectos como o palco sonoro, isto é, à percepção da espacialidade dos diferentes instrumentos. Nos maus auscultadores o som é demasiado compacto e todos os instrumentos parecem brotar indistintamente do mesmo local, ao passo que em auscultadores melhores há a sensação de uns estarem mais atrás ou mais à frente, mais de um lado ou mais de outro, etc. 

Seguidamente, ouço tudo outra vez num volume de som muito próximo do mínimo. Para mim, este é um dos testes mais fiáveis, pois permite ver o que se perdeu em relação à audição com um som mais forte. Os maus auscultadores, quando estão com o volume no mínimo, deixam-nos quase só com graves e agudos, perdendo-se quase todo o detalhe, ao passo que os bons preservam a diversidade e detalhe da audição anterior. 

Para terminar, ouço tudo outra vez praticamente com o volume no máximo. Este teste é o mais fácil de todos, pois os maus auscultadores tornam-se simplesmente insuportáveis: distorção (quando ela não está intencionalmente na gravação original, como é o caso de alguma música rock), agudos demasiado agressivos e o chamado "efeito muro de som". Por sua vez, os bons auscultadores são capazes de se aguentar bem quase no máximo, permitindo ao ouvido distinguir tudo o que lá está em vez de nos entregarem uma massa indistinta e pastosa de som. 

Quanto ao resto, que é muito, é uma questão de gostarmos de um som mais "quente" e envolvente ou de um mais "frio" e detalhado, de um palco mais distante ou de um palco mais próximo, de baixos mais sóbrios ou de baixos mais exuberantes, etc.

Eis o meu pódio.

AKG K451. Estes auscultadores da marca austríaca são de 2012, custam cerca de 80€ na FNAC (mas na Alemanha conseguem-se por cerca de 55 €), e foram premiados com cinco estrelas pela revista What Hi-Fi (como anunciado na própria caixa). 

Mal abri a caixa na noite de Natal, fiquei muito bem impressionado com a sua robustez e simplicidade do desenho. Traz também um utilíssimo estojo — o melhor dos três aqui referidos —, pois permite transportá-los descontraidamente sem receio de se partirem. Além disso, somos brindados com dois cabos (o que acontece quase só com auscultadores muito mais caros). Trata-se, portanto, de cabos amovíveis, ao contrário dos Koss e dos Sennheiser. Um dos cabos tem comando e microfone incorporados, compatíveis com os iPhone, iPod e iPad. 
Ao fim de várias horas seguidas de uso, já posso dizer que são muito confortáveis. Este é um aspecto muito importante para quem ouve música durante mais de uma hora seguida, aproximadamente — ainda recordo o desconforto que sobretudo os Koss me causavam ao fim de algum tempo, tanto nas têmporas como nas orelhas, obrigando-me a suspender a audição. 
Quanto ao som, fiquei imediatamente impressionado com eles, e ainda continuo: têm um som algo "quente" e uns baixos não exageradamente encorpados. O palco parece estar bastante mais próximo do que nos outros, mas sem se perderem as relações espaciais entre os instrumentos. Gostei especialmente de ouvir os médios da guitarra e da voz de Nick Drake, que parece estar ali mesmo a tocar para nós ao vivo. Mas também permitem saborear todos os detalhes do sussurrar do início do adágio de Bruckner. Por sua vez, o baixo de Fred Smith em Elevation é simultaneamente limpo, presente e musical, mas o que mais mais sobressai são os pormenores rítmicos do prato de choques da bateria de Billy Fica enquanto acompanha o memorável solo de guitarra de Richard Lloyd. Fiquei simplesmente surpreendido ao verificar que, mesmo com o volume no máximo, esta música electrificante dos Television se aguenta com todos os seus condimentos e quase sem uma pontinha de distorção. UAU!
Para terminar, destaco um outro aspecto em que estes auscultadores são melhores do que os outros dois: a fuga de som para o exterior (a que os entendidos chamam leaking). É muito desagradável para as pessoas que estão perto de nós o terem de "gramar" com o escape poluente da música que estamos a ouvir. É certo que nenhum auscultador supra-aural consegue evitar totalmente este efeito indesejável, mas, tendo isso em conta, estes K451 até se portam bem acima da média.  


KOSS Porta Pro. Estes auscultadores americanos de 1984 são os mais antigos de todos e o seu estrondoso sucesso faz deles uma referência neste segmento, até porque os cerca de 45€ que custam tornam-nos quase irresistíveis, dada a indiscutível qualidade de som que oferecem. Em 2012 saíram os Porta Pro KTC, que são exactamente iguais, tendo-lhes sido apenas acrescentados o micro e o controlo para iPod, iPhone e iPad. Mas esta versão custa mais cerca de 20€. 
O seu desenho característico dos anos 80 permaneceu inalterado, o que lhes confere um estilo algo retro, muito próprio (eu não desgosto). São os mais leves dos três, mas têm esponjas frágeis, embora seja fácil encontrar substitutas (eu substitui-as umas três vezes enquanto os usei). 
Como referi atrás, são algo desconfortáveis em audições mais longas, apesar de terem esponjas de amortecimento acima das orelhas e de terem um botão regulador da pressão (com três posições), que não me parece muito eficaz. Mas o problema talvez seja a minha anatomia; talvez seja cabeçudo e outras pessoas não sintam o mesmo. Também não gostei da desajeitada taleiga de cabedal onde se guardam, que sempre me pareceu pouco prática. Ao contrário dos outros, estes têm um cabo ligado a cada um dos lados, tendo de se enrolar os fios à volta do arco de alumínio quando se dobram. Devo ainda dizer que são os que têm mais problemas de fuga de som para o exterior.
Quanto ao som, são de facto impressionantes em equilíbrio e detalhe e, talvez por isso, também soam ligeiramente mais "frios" do que os outros. Apesar de muito versáteis, é na música clássica que eles mostram o melhor de si. Outro aspecto notável é também o modo como aguentam um elevado volume sonoro sem distorção e sem o efeito muro de som. 
Deixei de os usar porque, ao fim de três anos de uso intenso, um dos canais deixou de funcionar. Como o fabricante anuncia garantia vitalícia, tentei enviá-los para o distribuidor português, de modo a resolver o problema. Na FNAC acabaram por me informar, com surpresa, que a marca tinha deixado de ter representante em Portugal e que estava agora tudo centrado em Espanha. Enviei os auscultadores para o representante em Valência, mas não cheguei a obter resposta. Decidi, então, substituí-los pelos Sennheiser.


SENNHEISER PX100ii. Estes auscultadores do prestigiado fabricante alemão são de 2010 e custam cerca de 50€ na FNAC. Têm um cabo fixo ao lado esquerdo, com microfone e comandos compatíveis com iPod, iPhone e iPad. 
Na verdade, os que usei foram os PX100, que são praticamente iguais a estes PX100ii. São mais confortáveis do que os Koss, mas trazem uma taleiga para os guardar ainda mais fraca do que a dos Koss.
Os baixos são mais salientes do que nos Koss, aproximando-se mais, neste aspecto, aos AKG. Mas deixam respirar bem os médios e os agudos nunca são agressivos, mantendo um equilíbrio muito bom. Se os Koss dão o seu melhor na música clássica, estes Sennheiser dão o seu melhor no rock, embora sejam também muito bons para ouvir clássica e jazz

Em conclusão, são três excelentes auscultadores portáteis e todos são suficientemente versáteis para ouvir todo o tipo de música. Do que me apercebo, são o trio maravilha dentro destes preços e bem melhores do que grande parte dos auscultadores com o dobro, ou mesmo o triplo, do preço. A título de exemplo, comparei cuidadosamente os AKG com uns KEF M500, de uma gama de preços muito superior (a rondar os 300€) e estes não se destacam tanto como o preço faz crer, sendo em alguns aspectos muito difícil detectar diferenças. Neste momento estou vidrado nos AKG, mas a minha memória dos outros dois pode bem atraiçoar-me. 

As minhas preferências colocam em primeiro lugar os AKG, mas a relação preço-qualidade não deixa de pender para os Koss. Contudo, por uma questão de conforto e porque me desagrada a deficiente contenção da fuga do som para o exterior, mais facilmente compraria novamente os Sennheiser. 

Não é de admirar que estas três marcas tenham a melhor oferta, pois trata-se de marcas cujo prestígio se deve precisamente aos seus auscultadores, ao contrário da Sony, da Philips, da Pioneer, da Bose, etc., que se dedicam a muitas coisas ao mesmo tempo. Isso não impede, contudo, estas marcas de fabricarem também excelentes auscultadores.