sábado, 26 de julho de 2025

A estética é um ramo da epistemologia

A minha introdução à tradução portuguesa, para a editora Gradiva, de Linguagens da Arte, de Nelson Goodman, pode ser lida aqui.

Deixo apenas um dos parágrafos dessa introdução, para dar uma ideia do que se trata a quem desconhece a obra e o autor.

A ideia central que Goodman persegue em Linguagens da Arte só se torna completamente clara quando chegamos ao capítulo final. O que se pretende mostrar é que as artes são modos de obtenção de conhecimento e que a estética, ou filosofia da arte, tem como finalidade explicar como se obtém esse conhecimento. A estética é, pois, um ramo da epistemologia, ou teoria do conhecimento. Assim, as obras de arte não se destinam a ser contempladas, fruídas ou adoradas, mas a proporcionar conhecimento das coisas. E compreender uma obra de arte não consiste em apreciá-la, nem em ter experiências estéticas acerca dela, nem em descobrir a sua beleza. Compreender uma obra de arte é interpretá-la correctamente, tal como se faz quando se interpreta uma frase, um mapa, uma afirmação moral, um sinal luminoso ou uma radiografia. As ciências não são melhores nem piores do que as artes no que respeita à aquisição de conhecimento. Artes e ciências têm exactamente a mesma finalidade e a sua eficácia é semelhante, apesar de disporem de recursos diferentes. Todas visam criar ou construir versões de mundos, isto é, formas de organizar as coisas. E esses mundos são viáveis ou não em função daquilo que esperamos deles. É certo que o conhecimento está frequentemente associado à crença verdadeira (o chamado «conhecimento proposicional»), como acontece quando se pensa nas afirmações das ciências. Mas o conhecimento não é exclusivamente uma questão de crenças; a percepção, a detecção de padrões, o reconhecimento e a classificação são também actividades cognitivas. E estas actividades não só afectam as nossas crenças como são, em si, cognitivamente relevantes. Assim, as artes não têm um estatuto cognitivo periférico ou inferior ao que encontramos nas ciências. Esta é, em síntese, a perspectiva cognitivista da arte que Goodman procura sustentar ao longo deste livro.

terça-feira, 15 de julho de 2025

Mellotron: a pequena orquestra

Os tempos áureos do mellotron, um instrumento de tecla inventado em Inglaterra no início da década de 60 do século passado, form relativamente breves. Mas também foram marcantes, sobretudo após Paul McCartney usar, contra a opinião do produtor George Martin, esse novo instrumento em Strawberry Fields Forever, uma canção escrita por Lennon. Depois disso, foram os Rolling Stones, David Bowie, Elton John e sobretudo os Moody Blues, King Crimson, Genesis, Tangerine Dream, e até os Led Zeppelin e os Black Sabbath a recorrer ao som envolvente e melancólico do mellotron, conferindo uma espacialidade sonora e um toque de lirismo às suas músicas. 

O mellotron é um teclado com uma espécie de mini-orquestra escondida. O som que sai quando se pressionam as suas teclas resulta, na verdade, da leitura de fitas magnéticas pré-gravadas. Algo parecido a pressionar a tecla de um leitor de cassetes, em que cada fita tinha inicialmente a duração de apenas 8 segundos, tendo de se pressionar novamente para voltar ao início. Cada fita tinha o som pré-gravado de certos timbres (instrumentos), correspondente à nota de cada tecla (altura). Inicialmente, os sons pré-gravados podiam ser de quatro timbres diferentes: flautas, cordas (violinos), vozes (femininas ou masculinas) e também sopros metálicos. O teclista tinha de selecionar um dos timbres, mas alguns instrumentos tinham dois teclados lado a lado, podendo usar dois timbres ao mesmo tempo. Era como que uma espécie de pequena orquestra em forma de teclado. Mas, dado que o som produzido não tem qualquer variação de altura, por mais pequena que seja, também não se ouve aquele efeito de vibrato tão característico das orquestras. Daí produzir um som único e facilmente reconhecível. 



Em Strawberry Fields Forever, McCartney opta por aquele característico som de flautas, tal como, de resto, os Led Zeppelin virão a usar também em Stairway to Heaven, com John Paul Jones a tocar mellotron. Por sua vez, The Moody Blues, King Crimson e outros grupos de rock progressivo optam mais frequentemente pelo timbre das cordas, especialmente do violino. 

Para se ter uma ideia do que o uso do mellotron pode fazer por uma canção, veja-se a atípica e calma Changes, dos Black Sabbath, em que há apenas piano, voz e mellotron. Sem o mellotron, certamente esta belíssima canção ficaria demasiado repetitiva e sem envolvência. 

O mellotron é um instrumento tecnicamente delicado e de difícil manutenção, cujo transporte causa frequentemente problemas mecânicos. Daí que não seja aconselhável andar com ele de um lado para o outro, não se vendo muito em concertos ao vivo. Além disso, os sintetizadores portáteis começaram a incluir, principalmente a partir dos anos 1980, a emulação de uma enorme variedade de sons, incluindo cordas, vozes, madeiras e metais, acabando por substituir o mellotron. No entanto, músicos como os Oasis, Radiohead, Muse e Opeth continuaram a incluir em algumas das suas canções o som vintage do mellotron.

Uma curiosidade. José Cid foi dos poucos músicos portugueses em que o mellotron teve uma presença importante, nomeadamente no seu álbum 10 000 Anos Depois Entre Vénus e Marte

Eis uma lista de audição com 20 músicas em que se usa o mellotron. 

sexta-feira, 11 de julho de 2025

A filosofia é implicitamente pedagógica

Talvez nem todos os filósofos concordem e talvez nem sempre seja assim, mas as palavras abaixo, da filósofa Amélie Oksenberg Rorty, parecem conter mais do que um grão de verdade.

Os filósofos sempre procuraram transformar o modo como vemos e pensamos, como agimos e interagimos; sempre se tomaram como os derradeiros educadores da humanidade. Mesmo quando acreditavam que a filosofia deixa tudo como está, mesmo quando não apresentavam a filosofia como a atividade humana exemplar, pensavam que interpretar correctamente o mundo - compreendê-lo e compreender o nosso lugar nele nos libertaria da ilusão, encaminhando-nos para aquelas atividades (vida cívica, contemplação da ordem divina, progresso científico ou criatividade artística) que melhor nos convêm. Mesmo a filosofia "pura" - metafísica e lógica - é implicitamente pedagógica. Visa corrigir a miopia do passado e do imediato.

 

As teorias do conhecimento (Descartes, Locke) implicam reformas educativas. A maioria das teorias éticas (Hume, Rousseau e Kant) visavam reorientar a educação moral. A aplicação prática de teorias políticas (Hobbes, Mill e Marx) é direccionada para a educação dos cidadãos. Os sistemas metafísicos (Leibniz, Espinosa e Hegel) fornecem modelos para a investigação e, portanto, estabelecem padrões para a educação dos esclarecidos. Alguns filósofos (Locke, Rousseau, Bentham e Mill) fizeram das suas propostas educacionais uma característica central de sua filosofia.

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Ontologia do amor

Há diferentes tipos de amor, mas irei falar apenas do chamado amor romântico. Será que existe mesmo ou é apenas uma ficção agradável e conveniente? 

Presumindo que há mesmo amor romântico e que, portanto, não é uma mera fantasia, cabe perguntar: que tipo de coisa é o amor, ou seja, a que classe ontológica pertence o amor romântico? 

Será, como alegam alguns biólogos e psicólogos comportamentalistas, que o amor romântico é um evento físico, uma resposta física a um estímulo sexual? Ou será, como acreditam alguns espiritualistas místicos, um fenómeno espiritual (não psicológico): o encontro de uma alma com a sua alma gémea? Não será simplesmente a expressão de um tipo especial de sentimento de uma pessoa acerca de outra, como diriam os expressivistas? Ou será antes uma espécie de fenómeno mental, podendo envolver certas motivações, desejos, emoções, atitudes e crenças de uma pessoa em relação a outra? 

A maior parte dos filósofos contemporâneos consideram que a última pergunta é a que aponta na direção certa, ou seja, que o amor romântico é essencialmente algo mental: emoções, sentimentos, desejos, motivações, crenças, atitudes psicológicas, tudo isso são conteúdos mentais. Mas em que classe de fenómenos mentais se inclui o amor romântico? Entramos, pois, no domínio da ontologia do amor. 

Têm sido propostas três abordagens principais. Todas elas consideram que, mesmo que possa incluir aspectos não mentais, o amor romântico é essencialmente um fenómeno mental. Mas que tipo de fenómeno mental é o amor?

As principais abordagens são as seguintes: a) o amor é um evento mental, b) o amor é um estado mental dinâmico e c) o amor é uma disposição mental. 

Qual a diferença entre eventos, estados e disposições mentais? Em termos genéricos, um evento mental é uma ocorrência, como uma reação ou resposta a algo, podendo ter um carácter episódico, no sentido em que surge e desaparece, sem persistir ao longo do tempo. Por sua vez, os estados mentais dizem respeito a propriedades ou condições mentais perduráveis, sendo geralmente mais complexos, uma vez que podem envolver diversos eventos mentais. Já as disposições mentais são tendências, capacidades ou propensões para, em certas circunstâncias, um sujeito pensar, sentir ou agir de um certo modo.

Dentro de algumas destas três abordagens podemos, por sua vez, encontrar perspetivas diferentes. Eis um pequeníssimo resumo. 

O AMOR É UM EVENTO MENTAL  

A perspectiva valorativa 


O filósofo David Velleman defendeu, no ensaio «Love as a moral emotion» (1999), a ideia de que o amor romântico é uma reacção avaliativa como resposta ao valor percebido noutra pessoa. Trata-se de valorizar uma pessoa como resposta emocional adequada (ou racional) à percepção de que não estamos sozinhos quando encontramos nessa pessoa uma capacidade de valorização como a nossa. O amor não é apenas um sentimento mas antes a valorização de alguém como pessoa (Velleman recorre à noção kantiana de respeito) e como um ser racional especial. O que a emoção acrescenta ao sentimento é esta componente valorativa de carácter moral. Richard Wollheim, no seu livro The Thread of Life (1984), e Niko Kolodny, no ensaio «Love as valuing a relationship» (2003), também defendem versões semelhantes, embora não seja de todo claro se classificam o amor como um evento mental ou como um estado mental. Por sua vez, a filósofa Arina Pismenny, num ensaio intitulado precisamente «The amorality of romantic love» (2021), opõe-se a esta perspectiva.


O AMOR É UM ESTADO MENTAL DINÂMICO


A perspectiva historicista


Em «The historicity of Pschological attitudes» (1987), a filósofa Amélie O. Rorty classifica o amor romântico como um processo emocional interactivo entre um sujeito (que ama) e um objecto (pessoa amada). Trata-se de uma forma especial de interdependência emocional que persiste (não é um estado mental episódico) e vai formando um padrão dinâmico de atitudes psicológicas, individuadas pelo carácter do sujeito, pelo carácter do objecto e pela relação entre eles. Esta interacção vai moldando um tipo especial de narrativa emocional, com uma história própria, que não tem de ser causada por intenções nem por algum tipo de controlo voluntário. As emoções envolvidas não formam uma classe natural distinta dos desejos, motivos e de alguns tipos de crenças; o que distingue o amor é o padrão narrativo que daí resulta. Uma versão semelhante à de Rorty é defendida pela filósofa Annette Baier no artigo «Unsafe Loves» (1991).


O AMOR É UMA DISPOSIÇÃO MENTAL


A perspectiva afectiva


O filósofo David W. Hamlyn, no ensaio «The phenomena of love and hate» (1989) classifica o amor como uma pró-atitude emocionalmente motivada. Daí o seu carácter afectivo e disposicional. O amor, diz Hamlyn, é uma das duas emoções primordiais, juntamente com o ódio, que incluem sentimentos positivos e negativos em relação a algo e que estão pressupostos noutras emoções. Uma versão diferente desta perspectiva foi defendida por Robert Brown no livro Analyzing Love (1987).


A perspectiva volitiva-cuidadora


Harry Frankfurt, no seu livro As Razões do Amor (2004, trad. port. Gradiva), classifica o amor como um tipo de estrutura motivacional geradora das preferências que orientam a conduta em relação a outrem. Trata-se, portanto, de uma forma de motivação (disposição) que não é de carácter primariamente emocional, dado não se basear no sentimento sobre a pessoa amada, nem de carácter cognitivo, pois também não depende da opinião sobre a pessoa amada. É antes uma preocupação robusta, e não imparcial (daí que também não seja moral), um cuidado especial pela pessoa amada. Outra versão desta perspectiva é defendida por W. Newton-Smith no ensaio «A conceptual investigation of love» (1989).


A perspectiva volitiva-unificadora


No seu livro About Love - Reinventing Romance for Our Times (1998), Robert Solomon classifica o amor romântico como um compromisso (da vontade) com o mundo, em particular com outra pessoa. Tal compromisso tem em vista a construção de um tipo significativo de união entre pessoas, isto é, tem em vista a criação real de uma nova entidade: um «nós». Trata-se, portanto, da motivação para criar uma fusão unificadora entre duas pessoas. Essa nova entidade, que é um «nós», depende da convergência de vários desejos (sexuais, práticos, românticos, éticos), mas também da imaginação e do desejo de reciprocidade entre as pessoas que decidem unir-se. O amor é, pois, uma escolha, mas uma escolha de carácter emocional. Por isso, o amor não é um sentimento (sentimento e emoção são coisas diferentes) nem se opõe à razão. Robert Nozick, no ensaio «Love's Bond» (1989), e Roger Scruton, no livro Sexual Desire - A moral Philosophy of the erótic (1986), defenderam perspectivas muito semelhantes a esta.


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Há outros filósofos — e não só filósofos, como, por exemplo, a antropóloga Helen Fisher no seu livro Personal Love (1990) — que escreveram obras relevantes sobre a natureza, o valor ou a justificação do amor, mas também as há sobre a relação entre amor e ética e até entre amor e política. Mas o mapa de posições aqui esboçado diz respeito apenas à ontologia do amor.