quarta-feira, 2 de julho de 2025

Ontologia do amor

Há diferentes tipos de amor. Mas irei falar apenas do chamado amor romântico. Será que existe mesmo? Não poderá ser apenas uma ficção agradável ou conveniente? 

Presumindo que há mesmo amor romântico e que, portanto, não é uma mera fantasia, cabe perguntar: que tipo de coisa é o amor? Dito de outro modo: a que classe ontológica pertence o amor romântico? 

Será, como alegam alguns biólogos e psicólogos comportamentalistas, que o amor romântico é um evento físico, uma resposta física a um estímulo sexual? Ou será, como acreditam alguns espiritualistas místicos, um fenómeno espiritual (não psicológico): o encontro de uma alma com a sua alma gémea? Não será simplesmente a expressão de um tipo especial de sentimento de uma pessoa acerca de outra, como diriam os expressivistas? Ou será antes uma espécie de fenómeno mental, podendo envolver certas motivações, desejos, emoções, atitudes e crenças de uma pessoa em relação a outra? 

A maior parte dos filósofos contemporâneos consideram que a última pergunta é a que aponta na direção certa, ou seja, que o amor romântico é essencialmente algo mental. Mas emoções, sentimentos, desejos, motivações, crenças, atitudes psicológicas, tudo isso são conteúdos mentais. Em que classe de fenómenos mentais se inclui o amor romântico? Estamos, pois, no domínio da ontologia do amor. 

Neste domínio, têm sido propostas três abordagens principais, considerando todas elas que o amor romântico é essencialmente um fenómeno mental, ainda que possa incluir outro tipo de componentes não mentais. Mas que tipo de fenómeno mental é?

As principais abordagens são as seguintes: a) o amor é um evento mental, b) o amor é um estado mental dinâmico e c) o amor é uma disposição mental. 

Qual a diferença entre elas? Em termos genéricos, um evento mental é uma ocorrência, como uma reação ou resposta a algo, podendo ter um carácter episódico, no sentido em que surge e desaparece, sem persistir ao longo do tempo. Por sua vez, os estados mentais dizem respeito a propriedades ou condições mentais perduráveis, sendo geralmente mais complexos, uma vez que podem envolver diversos eventos mentais. Já as disposições mentais são tendências, capacidades ou propensões para, em certas circunstâncias, um sujeito pensar, sentir ou agir de um certo modo.

Dentro de algumas destas três abordagens podemos, por sua vez, encontrar perspetivas diferentes. Eis um pequeníssimo resumo. 

O AMOR É UM EVENTO MENTAL  

A perspectiva valorativa 


O filósofo David Velleman defendeu, no ensaio «Love as a moral emotion» (1999), a ideia de que o amor romântico é uma reacção avaliativa como resposta ao valor percebido noutra pessoa. Trata-se de valorizar uma pessoa como resposta emocional adequada (ou racional) à percepção de que não estamos sozinhos quando encontramos nessa pessoa uma capacidade de valorização como a nossa. O amor não é apenas um sentimento mas antes a valorização de alguém como pessoa (Hamlyn recorre à noção kantiana de respeito) e como um ser racional especial. O que a emoção acrescenta ao sentimento é esta componente valorativa de carácter moral. Richard Wollheim, no seu livro The Thread of Life, e Niko Kolodny, no ensaio «Love as valuing a relationship», também defendem versões semelhantes, embora não seja de todo claro se classificam o amor como um evento mental ou como um estado mental. Por sua vez, a filósofa Arina Pismenny, num recente ensaio intitulado precisamente «The amorality of romantic love», opõe-se a esta perspectiva.


O AMOR É UM ESTADO MENTAL DINÂMICO


A perspectiva historicista


Em «The historicity of Pschological attitudes», a filósofa Amélie Rorty classifica o amor romântico como um processo emocional interactivo entre um sujeito (que ama) e um objecto (pessoa amada). Trata-se de uma forma especial de interdependência emocional que persiste (não é um estado mental episódico) e vai formando um padrão dinâmico de atitudes psicológicas, individuadas pelo carácter do sujeito, pelo carácter do objecto e pela relação entre eles. Esta interacção vai moldando um tipo especial de narrativa emocional, com uma história própria, que não tem de ser causada por intenções nem por algum tipo de controlo voluntário. As emoções envolvidas não formam uma classe natural distinta dos desejos, motivos e de alguns tipos de crenças; o que distingue o amor é o padrão narrativo que daí resulta. Uma versão semelhante à de Rorty é defendida pela filósofa Annette Baier no artigo «Unsafe Loves».


O AMOR É UMA DISPOSIÇÃO MENTAL


A perspectiva afectiva


O filósofo David W. Hamlyn classifica o amor como uma pró-atitude emocionalmente motivada. Daí o seu carácter afectivo e disposicional. O amor, diz Hamlyn, é uma das duas emoções primordiais, juntamente com o ódio, que incluem sentimentos positivos e negativos em relação a algo e que estão pressupostos noutras emoções. Uma versão diferente desta perspectiva foi defendida por Robert Brown no livro Analyzing Love.


A perspectiva volitiva-cuidadora


Harry Frankfurt, no seu livro As Razões do Amor (trad. port. Gradiva), classifica o amor como um tipo de estrutura motivacional geradora das preferências que orientam a conduta em relação a outrem. Trata-se, portanto, de uma forma de motivação (disposição) que não é de carácter primariamente emocional, dado não se basear no sentimento sobre a pessoa amada, nem de carácter cognitivo, pois também não depende da opinião sobre a pessoa amada. É antes uma preocupação robusta, e não imparcial (daí que também não seja moral), um cuidado especial pela pessoa amada. Outra versão desta perspectiva é defendida por W. Newton-Smith no ensaio «A conceptual investigation of love».


A perspectiva volitiva-unificadora


No seu livro About Love, Robert Solomon classifica o amor romântico como um compromisso (da vontade) com o mundo, em particular com outra pessoa. Tal compromisso tem em vista a construção de um tipo significativo de união entre pessoas, isto é, tem em vista a criação real de uma nova entidade: um «nós». Trata-se, portanto, da motivação para criar uma fusão unificadora entre duas pessoas. Essa nova entidade, que é um «nós», depende da convergência de vários desejos (sexuais, práticos, românticos, éticos), mas também da imaginação e do desejo de reciprocidade entre as pessoas que decidem unir-se. O amor é, pois, uma escolha, mas uma escolha de carácter emocional. Por isso, o amor não é um sentimento (sentimento e emoção são coisas diferentes) nem se opõe à razão. Robert Nozick, no ensaio «Love's Bond», e Roger Scruton, no livro Sexual Desire, defenderam perspectivas muito semelhantes a esta.


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Há outros filósofos — e não só filósofos, como, por exemplo, a antropóloga Helen Fisher — que escreveram obras relevantes sobre a natureza, o valor ou a justificação do amor, mas também as há sobre a relação entre amor e ética e até entre amor e política. Mas o mapa de posições aqui esboçado diz respeito apenas à ontologia do amor.