domingo, 16 de março de 2025

De Wittgenstein a Dickie, via Suits


É bem conhecida a tese de Wittgenstein de que os conceitos não têm conteúdos precisos que possam ser captados por uma definição ou análise em termos de condições necessárias e suficientes. Se prestarmos atenção ao modo como aplicamos os conceitos, o seu uso mostra que, em geral, eles não têm fronteiras nítidas ou claramente delimitadas. Daí que a busca de definições seja, conclui Wittgenstein, uma tarefa condenada ao fracasso. Ele convida-nos a pensar no conceito de jogo e na enorme diversidade de jogos que há, desde jogos de tabuleiro a jogos com cartas, com bola, de corridas, torneios desportivos, etc. O que faz todas essas coisas serem jogos? Uma resposta tentadora é começar por reconhecer que «algo deve ser comum a todos os jogos, caso contrário não se chamariam jogos». Porém, Wittgenstein considera que partir desse princípio é começar mal. O que temos de fazer, diz ele, não é supor que há algo comum a todos os jogos, mas antes olhar para os diferentes jogos e ver se encontramos alguma característica comum a todos. Trata-se antes de olhar e ver, não de pensar. Ora, se olharmos com cuidado, não vemos coisa alguma que seja comum a todos os jogos, e só aos jogos. O conceito de jogo é, diz Wittgenstein, um conceito aberto e, como tal, indefinível. É aberto no sentido em que a sua correcta aplicação não está sujeita a qualquer requisito prévio, ou seja, não depende de condições necessárias e suficientes. Tudo o que vemos é uma rede de semelhanças variáveis entre as diferentes coisas às quais aplicamos esse conceito, isto é, uma teia instável de semelhanças familiares. Não dispomos, portanto, dos ingredientes de uma definição explícita.

 
Certo? Não, errado! Pelo menos, é o que sugere o filósofo americano Bernard Suits no seu maravilhoso livro A Cigarra Filosófica, cuja tradução portuguesa para a Gradiva se encontra esgotada. Suits não está interessado na questão da definição de conceitos em geral, mas apenas na possibilidade de haver uma definição adequada do conceito de jogo. A resposta de Suits é que o conceito de jogo não é aberto, havendo mesmo condições necessárias e conjuntamente suficientes para que algo seja um jogo. É, então, possível dar uma definição explícita, e verdadeira, do conceito de jogo — ou, mais precisamente, do que é jogar um jogo. O próprio avança com tal definição, desafiando-nos seguidamente a procurar contraexemplos. A versão abreviada da definição é a seguinte: um jogo é uma tentativa voluntária de superar obstáculos desnecessários.

Uma versão mais completa e informativa diz o seguinte: jogar um jogo é qualquer actividade que visa alcançar um estado de coisas específico usando unicamente as regras permitidas, as quais são voluntariamente aceites apenas por tornarem possível tal actividade.
 
Esta definição estabelece três condições necessárias, que são conjuntamente suficientes:

a) alcançar um estado de coisas específico. A esta condição Suits dá o nome de fim prelusório. Trata-se de estabelecer de antemão uma dada finalidade lúdica, que pode ser meter uma bola num buraco do chão (no golfe), alcançar o cume de uma montanha (no montanhismo), ser o primeiro a atravessar uma linha no chão (nas corridas de 100, 200 metros, etc.);
 
b) usar unicamente as regras permitidas. A esta condição Suits chama regras constitutivas. Sem regras não há jogo, pelo que elas fazem parte do próprio jogo. Assim, quando se joga golfe, não basta simplesmente meter a bola num buraco do chão (fim prelusório), pois é preciso cumprir regras que proíbem os meios mais eficientes de o alcançar: não se estará a jogar golfe se se meter a bola no buraco com a mão, que é a maneira mais eficiente de atingir o fim pretendido. É também por isso que ir de helicóptero para o cume da montanha não é fazer montanhismo; e que, numa corrida de 200 metros, também não dá atravessar a linha no chão, indo por um atalho que lhe permita correr menos 50 metros. Assim, as regras constitutivas proíbem os meios mais eficientes, prescrevendo meios ineficientes (para quê percorrer 200 metros para cortar a fita se posso fazê-lo percorrendo apenas 150?). Isso não significa, contudo, que não se tente seguir as regras constitutivas do modo mais eficiente;
  
c) aceitar voluntariamente apenas as regras permitidas. A esta condição Suits chama atitude lusória. Trata-se de o jogador ter a atitude psicológica adequada para poder jogar o jogo, o que impede qualquer tipo de batota ou de violação das regras constitutivas, as quais, apesar de arbitrárias, foram voluntariamente aceites, e sem o cumprimento das quais não estará verdadeiramente a jogar. Suits chama lusória a essa atitude, em vez de lúdica, porque se trata de coisas diferentes. A atitude lusória envolve o compromisso de cumprir regras constitutivas, ao passo que muitas actividades recreativas (lúdicas) não requerem a aceitação de quaisquer regras constitutivas.

Assim, qualquer jogo, e só os jogos, visam um certo tipo de finalidade, têm regras constitutivas que proíbem os meios mais eficientes de atingir esse fim, e requerem do jogador uma certa atitude. Poderá o conceito de arte requerer o mesmo tipo de condições?
 
Os filósofos da arte wittgensteinianos — como Morris Weitz, Paul Ziff e William Kennick — procuraram mostrar que o conceito de arte é também aberto, como o de jogo. Mas, tal como Wittgenstein não conseguiu convencer Suits, também os wittgensteinianos não conseguiram convencer outros filósofos da arte posteriores, como Maurice Mandelbaum, Arthur Danto e George Dickie.

Dickie não deixou, no entanto, de retirar importantes ensinamentos dos wittgensteinianos. Concorda com eles que, se olharmos com atenção, não encontraremos característica alguma que seja comum a todas as obras de arte, e só a elas. No entanto, isso não mostra que tais características não existam; apenas mostra que não podem ser detectadas pelo olhar. Talvez haja condições que não dependem do que encontramos ao olhar para os objectos de arte: por exemplo, uma certa atitude da parte de quem os produz ou os aprecia. Talvez seja preciso ter em conta o modo como certas pessoas tratam tais objectos em vez de olharmos directamente para os próprios objectos. Talvez não haja uma essência da arte e nenhuma coisa seja intrinsecamente arte, como sublinham os wittgensteinianos. Ainda assim, podemos aprender mais com o tipo de análise conceptual que Suits faz do que com os wittgensteinianos, caso haja algum paralelismo entre a definição que Suits dá do conceito de jogo e a que Dickie dá do conceito de arte. 

A definição — uma das versões — apresentada por Dickie é, abreviadamente a seguinte: algo é arte se, e só se, for um artefacto com um conjunto de aspectos que levaram alguém que actua em nome de uma certa instituição a propô-lo como candidato a apreciação

Parece que também esta definição inclui como condição necessária a tentativa de alcançar um certo fim (neste caso não é um fim prelusório, claro): algo ser apresentado como candidato a apreciação. E também podemos ver aqui regras constitutivas, nomeadamente a observação dos procedimentos institucionais por meio dos quais se confere o estatuto de candidato a apreciação a certos objectos. Por fim, para se pertencer a essa instituição, a que Dickie dá o nome de mundo da arte, há que ter a atitude adequada, que consiste em desempenhar um certo papel, seja o de artista, o de apresentador intermediário ou o de público da arte.

Será que o tipo de dificuldades que podem ser apontadas à definição de jogo dada por Suits poderá aplicar-se à definição de arte dada por Dickie?