terça-feira, 12 de agosto de 2025

A fotografia é uma das artes?


Não, a fotografia não é uma forma de arte, responde o filósofo da arte Roger Scruton no seu muito discutido artigo «Fotografia e representação», de 1981.

 

Sim, claro que a fotografia é uma forma de arte, considera o filósofo da arte canadiano Dominic McIver Lopes, em reposta a Scruton, no artigo de 2013 «Agora somos todos artistas» e também no livro Quatro Artes da Fotografia, de 2016.

 

A questão não é se uma dada imagem fotográfica pode ser uma obra de arte. Ninguém tem dúvidas que pode. É antes a questão da própria natureza da fotografia, mais precisamente se essa natureza permite classificá-la como uma genuína forma de arte.

 

Apesar de responderem de forma diferente à questão, Scruton e Lopes (e qualquer pessoa sensata) concordam que as duas afirmações seguintes são falsas:

1. Nenhuma fotografia é uma obra de arte. 

2. Todas as fotografias são obras de arte.

 

Ao defender que a fotografia não é, em si, uma forma de arte, Scruton não está a dizer que nenhuma fotografia é uma obra de arte. Claro que há muitas fotografias que são obras de arte, reconhece Scruton, tal como há peças de mobiliário que são obras de arte, apesar de o mobiliário não ser uma forma de arte.

 

Por sua vez, ao defender que a fotografia é, sim, uma forma de arte, Lopes não está a dizer que todas as fotografias são obras de arte. Claro que há muitas fotografias que não são obras de arte, tal como há pinturas que não são obras de arte, apesar de a pintura ser uma forma de arte. 

 

Uma maneira simplista de descrever as duas perspetivas em confronto é a seguinte: uns consideram que a fotografia é essencialmente um processo de rastreamento mecânico de características do que já está aí, sendo esse processo causal que confere autoridade epistémica às imagens fotográficas, mas que, por isso mesmo, não deixa lugar para a intenção criativa requerida pelas artes; outros, pelo contrário, consideram que a componente mecânica própria da fotografia é apenas uma tecnologia de registo do resultado visível de alguma intenção representacional, resultado esse que está sujeito a interpretação, e em cujas imagens podemos, por isso, encontrar valor estético. Em suma, o que está em causa é se a imagem fotográfica é o resultado de um processo essencialmente não mental ou se, pelo contrário, consiste essencialmente numa representação pessoal que requer uma interpretação subjetiva.  

 

O argumento cético de Scruton segue a primeira das duas linhas de raciocínio acabadas de enunciar. Como também foi referido, Scruton não irá concluir que nenhuma fotografia pode ser arte, mas antes que a fotografia não é, em si mesma, uma forma de arte. Há fotografias que são arte, mas o seu carácter artístico decorre, segundo Scruton, de algo que, de certo modo, não é estritamente fotográfico mas se acrescenta à pura imagem fotográfica A fotografia pura é a imagem fotográfica não manipulada por processos que vão além do mero registo mecânico: por exemplo, manipula-se a imagem fotográfica quando se acrescentam efeitos próprios da pintura ou de outras artes. Quando o fotógrafo recorre a esse tipo de efeitos, a imagem criada pode ter valor artístico, mas deixa de ser uma fotografia pura. Scruton pensa que há apenas duas maneiras de uma imagem fotográfica ter valor artístico ou estético: quando se recorre a efeitos próprios de outras artes, a imagem daí resultante pode ter valor artístico; caso não haja manipulação artística, a fotografia pode, ainda assim, ter conteúdo estético, mas o conteúdo estético de uma fotografia está no objeto em vez de, como nas artes, na própria imagem.



Vale a pena ter uma ideia mais precisa do argumento de Scruton. É um argumento relativamente longo, mas que pode ser resumido assim:

 

1. Uma fotografia pura é uma imagem cujo conteúdo visível resulta apenas de um processo causal de rastreio de características, rastreio esse que é independente de crenças.

2. Se uma fotografia pura é uma imagem cujo conteúdo visível resulta apenas de um processo causal de rastreio de características que é independente de crenças, então não pode haver qualquer interesse nela enquanto pensamento visualmente expresso. 

3. Mas, uma imagem só é uma obra de arte representacional se puder haver interesse nela enquanto pensamento visualmente expresso.

4. Portanto, nenhuma fotografia pura é uma obra de arte representacional.

5. Mas, a fotografia só é uma arte se algumas fotografias puras forem obras de arte representacionais.

6. Logo, a fotografia não é uma arte.


Este argumento assenta em três ideias principais: na fotografia pura há causalidade mecânica em vez de, como nas artes, intenção artística; a fotografia pura limita-se a registar em vez de, como nas artes, representar; sem representação imagética não há interesse estético.

 

Se este argumento é válido ou não depende de como as premissas forem interpretadas. Lopes considera que o argumento não é válido ou, se for válido, estamos perante uma petição de princípio. 

 

Há anos, a Universidade do Minho deu-me a feliz oportunidade de comentar, ao lado de Lopes, o seu o artigo «Agora somos todos artistas». Concordei com o essencial dos seus argumentos contra Scruton, mas pareceu-me, ainda assim, que Lopes deixou intocado o que penso ser o aspeto mais frágil do argumento de Scruton. Trata-se da noção de representação, que encontramos em 3, 4 e 5, como algo essencialmente intencional, e que julgo ser disputável.


Com Dominic McIver Lopes, na UM, em Braga.

 

A noção de representação adoptada por Scruton é a tranca que bloqueia as portas da arte à fotografia qua fotografia. Scruton pensa que toda a representação é intencional e, portanto, que a representação imagética é uma expressão de um pensamento incorporado numa forma visual. Dado que a fotografia é essencialmente uma tecnologia de produção mecânica de imagens, as fotografias são registos independentes de crenças, não havendo intencionalidade mas apenas causalidade. Mas parece-me haver um pressuposto errado aqui, a saber, que toda a representação é intencional.

 

Uma definição comum de representação é:  x representa y se e somente se x está em vez de y.  Talvez isto não permita dizer, como acreditam alguns filósofos, que os anéis no interior dos troncos de certas árvores representam a sua idade, ou que o ponteiro do velocímetro de um automóvel representa a velocidade a que esse automóvel se desloca. Os anéis e os ponteiros simplesmente indicam em vez de representarem, pois nem os anéis nem os ponteiros estão em vez da idade dos troncos e da velocidade do automóvel, respectivamente. Porém, não deixa de ser razoável dizer que a representação pode ser causalmente determinada, independentemente da intenção: um pintor que queira pintar a Praça do Rossio, em Lisboa e que, por engano ou desconhecimento, monte o seu cavalete na Praça da Figueira, mesmo ao lado, pensando que está a pintar a Praça do Rossio, não está, de facto a fazer uma pintura da Praça do Rossio mas sim da Praça da Figueira. A intenção de representar um lugar não corresponde, neste caso, ao que foi efectivamente representado. O que quero realçar é que talvez a intenção não seja condição necessária nem suficiente da representação imagética ou que, pelo menos, não seja possível descortinar a intenção efetiva na forma percepcionada. 


Além disso, também não é implausível que a relação de representação, não sendo simétrica, seja bidireccional. Um exemplo desta bidireccionalidade é o pensamento do fotógrafo de que, dadas as características e o potencial imagético de um certo objeto, este se lhe impõe como algo que merece ser visualmente rastreado, havendo aqui não só intencionalidade (numa direcção que vai do sujeito para o objecto) mas também causalidade (numa direcção que vai do objecto para o sujeito). Assim, o interesse estético da fotografia enquanto fotografia pode resultar do olhar selectivo do fotógrafo (um olhar prospetivo), o qual só o dispositivo mecânico permite registar com acuidade, de modo a que possamos encontrar significados inesperados nas características visuais rastreadas, e de outro modo inacessíveis. Isso nem sempre é conseguido. É por isso que muitas fotografias não são obras de arte nem têm interesse estético.

 

Outro aspecto problemático do argumento de Scruton, relacionado com o anterior, e a que Lopes também não me pareceu dar suficiente importância, é o modo como Scruton entende a noção de fotografia pura, referida nas duas primeiras premissas. A noção de fotografia pura de Scruton acaba por ser aquela em que o fotógrafo não tem verdadeiro controlo sobre a imagem obtidaMas, se assim for, penso que Scruton é incapaz de nos dar exemplos claros de fotografias puras, a não ser fotografias tiradas inadvertidamente. Assim, os melhores exemplos de fotografias puras seriam, nesse sentido, fotografias sem fotógrafos. Creio que essa é uma prática fotográfica inexistente.

 

Lopes acaba por ir mais longe do que seria de esperar na sua réplica a Scruton, ao acrescentar que, graças à fotografia digital, podemos agora ser todos artistas. Claro que podemos, e não só graças à fotografia digital. Podemos sim, mas não somos. Lopes considera que, diferentemente da pintura e da fotografia não digital, a fotografia digital libertou-se das paredes dos museus e das galerias de arte. No entanto, Lopes poderia ter deixado claro que tal não se deve tanto à vulgarização dos equipamentos fotográficos nem à proliferação de galerias virtuais. Bem vistas as coisas, trata-se antes de uma mutação ontológica operada pela fotografia não digital: as fotografias tradicionais, diferentemente das fotografias digitais, são o tipo de objecto que precisa, como as pinturas, das paredes dos museus e galerias para serem exibidas. Claro que as pinturas podem ser fotografadas e exibidas num ecrã de computador. Mas uma pintura reproduzida num ecrã de computador não é uma pintura. É apenas uma fotografia de uma pintura. Assim, as pinturas precisam, como as fotografias tradicionais, das paredes de museus e galerias para serem exibidas e, portanto, de alguém que decida quais delas merecem um lugar nessas paredes exíguas. Em contrapartida, no caso da fotografia digital, basta ter um banal telemóvel, um software de edição de imagem no nosso computador e uma conta no Flickr, por exemplo, para que tenhamos tudo o que é necessário para ser um artistasem necessidade de curadores, nem de especialistas, nem de aparato institucional algum. 


Podemos agora ser todos artistas, sim. E, contudo, só alguns o são.

sábado, 26 de julho de 2025

A estética é um ramo da epistemologia

A minha introdução à tradução portuguesa, para a editora Gradiva, de Linguagens da Arte, de Nelson Goodman, pode ser lida aqui.

Deixo apenas um dos parágrafos dessa introdução, para dar uma ideia do que se trata a quem desconhece a obra e o autor.

A ideia central que Goodman persegue em Linguagens da Arte só se torna completamente clara quando chegamos ao capítulo final. O que se pretende mostrar é que as artes são modos de obtenção de conhecimento e que a estética, ou filosofia da arte, tem como finalidade explicar como se obtém esse conhecimento. A estética é, pois, um ramo da epistemologia, ou teoria do conhecimento. Assim, as obras de arte não se destinam a ser contempladas, fruídas ou adoradas, mas a proporcionar conhecimento das coisas. E compreender uma obra de arte não consiste em apreciá-la, nem em ter experiências estéticas acerca dela, nem em descobrir a sua beleza. Compreender uma obra de arte é interpretá-la correctamente, tal como se faz quando se interpreta uma frase, um mapa, uma afirmação moral, um sinal luminoso ou uma radiografia. As ciências não são melhores nem piores do que as artes no que respeita à aquisição de conhecimento. Artes e ciências têm exactamente a mesma finalidade e a sua eficácia é semelhante, apesar de disporem de recursos diferentes. Todas visam criar ou construir versões de mundos, isto é, formas de organizar as coisas. E esses mundos são viáveis ou não em função daquilo que esperamos deles. É certo que o conhecimento está frequentemente associado à crença verdadeira (o chamado «conhecimento proposicional»), como acontece quando se pensa nas afirmações das ciências. Mas o conhecimento não é exclusivamente uma questão de crenças; a percepção, a detecção de padrões, o reconhecimento e a classificação são também actividades cognitivas. E estas actividades não só afectam as nossas crenças como são, em si, cognitivamente relevantes. Assim, as artes não têm um estatuto cognitivo periférico ou inferior ao que encontramos nas ciências. Esta é, em síntese, a perspectiva cognitivista da arte que Goodman procura sustentar ao longo deste livro.

terça-feira, 15 de julho de 2025

Mellotron: a pequena orquestra

Os tempos áureos do mellotron, um instrumento de tecla inventado em Inglaterra no início da década de 60 do século passado, form relativamente breves. Mas também foram marcantes, sobretudo após Paul McCartney usar, contra a opinião do produtor George Martin, esse novo instrumento em Strawberry Fields Forever, uma canção escrita por Lennon. Depois disso, foram os Rolling Stones, David Bowie, Elton John e sobretudo os Moody Blues, King Crimson, Genesis, Tangerine Dream, e até os Led Zeppelin e os Black Sabbath a recorrer ao som envolvente e melancólico do mellotron, conferindo uma espacialidade sonora e um toque de lirismo às suas músicas. 

O mellotron é um teclado com uma espécie de mini-orquestra escondida. O som que sai quando se pressionam as suas teclas resulta, na verdade, da leitura de fitas magnéticas pré-gravadas. Algo parecido a pressionar a tecla de um leitor de cassetes, em que cada fita tinha inicialmente a duração de apenas 8 segundos, tendo de se pressionar novamente para voltar ao início. Cada fita tinha o som pré-gravado de certos timbres (instrumentos), correspondente à nota de cada tecla (altura). Inicialmente, os sons pré-gravados podiam ser de quatro timbres diferentes: flautas, cordas (violinos), vozes (femininas ou masculinas) e também sopros metálicos. O teclista tinha de selecionar um dos timbres, mas alguns instrumentos tinham dois teclados lado a lado, podendo usar dois timbres ao mesmo tempo. Era como que uma espécie de pequena orquestra em forma de teclado. Mas, dado que o som produzido não tem qualquer variação de altura, por mais pequena que seja, também não se ouve aquele efeito de vibrato tão característico das orquestras. Daí produzir um som único e facilmente reconhecível. 



Em Strawberry Fields Forever, McCartney opta por aquele característico som de flautas, tal como, de resto, os Led Zeppelin virão a usar também em Stairway to Heaven, com John Paul Jones a tocar mellotron. Por sua vez, The Moody Blues, King Crimson e outros grupos de rock progressivo optam mais frequentemente pelo timbre das cordas, especialmente do violino. 

Para se ter uma ideia do que o uso do mellotron pode fazer por uma canção, veja-se a atípica e calma Changes, dos Black Sabbath, em que há apenas piano, voz e mellotron. Sem o mellotron, certamente esta belíssima canção ficaria demasiado repetitiva e sem envolvência. 

O mellotron é um instrumento tecnicamente delicado e de difícil manutenção, cujo transporte causa frequentemente problemas mecânicos. Daí que não seja aconselhável andar com ele de um lado para o outro, não se vendo muito em concertos ao vivo. Além disso, os sintetizadores portáteis começaram a incluir, principalmente a partir dos anos 1980, a emulação de uma enorme variedade de sons, incluindo cordas, vozes, madeiras e metais, acabando por substituir o mellotron. No entanto, músicos como os Oasis, Radiohead, Muse e Opeth continuaram a incluir em alguns das suas canções o som vintage do mellotron.

Uma curiosidade. José Cid foi dos poucos músicos portugueses em que o mellotron teve uma presença importante, nomeadamente no seu álbum 10 000 Anos Depois Entre Vénuas e Marte

Eis uma lista de audição com 20 músicas em que se usa o mellotron. 

sexta-feira, 11 de julho de 2025

A filosofia é implicitamente pedagógica

Talvez nem todos os filósofos concordem e talvez nem sempre seja assim, mas as palavras abaixo, da filósofa Amélie Oksenberg Rorty, parecem conter mais do que um grão de verdade.

Os filósofos sempre procuraram transformar o modo como vemos e pensamos, como agimos e interagimos; sempre se tomaram como os derradeiros educadores da humanidade. Mesmo quando acreditavam que a filosofia deixa tudo como está, mesmo quando não apresentavam a filosofia como a atividade humana exemplar, pensavam que interpretar correctamente o mundo - compreendê-lo e compreender o nosso lugar nele nos libertaria da ilusão, encaminhando-nos para aquelas atividades (vida cívica, contemplação da ordem divina, progresso científico ou criatividade artística) que melhor nos convêm. Mesmo a filosofia "pura" - metafísica e lógica - é implicitamente pedagógica. Visa corrigir a miopia do passado e do imediato.

 

As teorias do conhecimento (Descartes, Locke) implicam reformas educativas. A maioria das teorias éticas (Hume, Rousseau e Kant) visavam reorientar a educação moral. A aplicação prática de teorias políticas (Hobbes, Mill e Marx) é direccionada para a educação dos cidadãos. Os sistemas metafísicos (Leibniz, Espinosa e Hegel) fornecem modelos para a investigação e, portanto, estabelecem padrões para a educação dos esclarecidos. Alguns filósofos (Locke, Rousseau, Bentham e Mill) fizeram das suas propostas educacionais uma característica central de sua filosofia.

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Ontologia do amor

Há diferentes tipos de amor, mas irei falar apenas do chamado amor romântico. Será que existe mesmo ou é apenas uma ficção agradável e conveniente? 

Presumindo que há mesmo amor romântico e que, portanto, não é uma mera fantasia, cabe perguntar: que tipo de coisa é o amor, ou seja, a que classe ontológica pertence o amor romântico? 

Será, como alegam alguns biólogos e psicólogos comportamentalistas, que o amor romântico é um evento físico, uma resposta física a um estímulo sexual? Ou será, como acreditam alguns espiritualistas místicos, um fenómeno espiritual (não psicológico): o encontro de uma alma com a sua alma gémea? Não será simplesmente a expressão de um tipo especial de sentimento de uma pessoa acerca de outra, como diriam os expressivistas? Ou será antes uma espécie de fenómeno mental, podendo envolver certas motivações, desejos, emoções, atitudes e crenças de uma pessoa em relação a outra? 

A maior parte dos filósofos contemporâneos consideram que a última pergunta é a que aponta na direção certa, ou seja, que o amor romântico é essencialmente algo mental: emoções, sentimentos, desejos, motivações, crenças, atitudes psicológicas, tudo isso são conteúdos mentais. Mas em que classe de fenómenos mentais se inclui o amor romântico? Entramos, pois, no domínio da ontologia do amor. 

Têm sido propostas três abordagens principais. Todas elas consideram que, mesmo que possa incluir aspectos não mentais, o amor romântico é essencialmente um fenómeno mental. Mas que tipo de fenómeno mental é o amor?

As principais abordagens são as seguintes: a) o amor é um evento mental, b) o amor é um estado mental dinâmico e c) o amor é uma disposição mental. 

Qual a diferença entre eventos, estados e disposições mentais? Em termos genéricos, um evento mental é uma ocorrência, como uma reação ou resposta a algo, podendo ter um carácter episódico, no sentido em que surge e desaparece, sem persistir ao longo do tempo. Por sua vez, os estados mentais dizem respeito a propriedades ou condições mentais perduráveis, sendo geralmente mais complexos, uma vez que podem envolver diversos eventos mentais. Já as disposições mentais são tendências, capacidades ou propensões para, em certas circunstâncias, um sujeito pensar, sentir ou agir de um certo modo.

Dentro de algumas destas três abordagens podemos, por sua vez, encontrar perspetivas diferentes. Eis um pequeníssimo resumo. 

O AMOR É UM EVENTO MENTAL  

A perspectiva valorativa 


O filósofo David Velleman defendeu, no ensaio «Love as a moral emotion» (1999), a ideia de que o amor romântico é uma reacção avaliativa como resposta ao valor percebido noutra pessoa. Trata-se de valorizar uma pessoa como resposta emocional adequada (ou racional) à percepção de que não estamos sozinhos quando encontramos nessa pessoa uma capacidade de valorização como a nossa. O amor não é apenas um sentimento mas antes a valorização de alguém como pessoa (Velleman recorre à noção kantiana de respeito) e como um ser racional especial. O que a emoção acrescenta ao sentimento é esta componente valorativa de carácter moral. Richard Wollheim, no seu livro The Thread of Life (1984), e Niko Kolodny, no ensaio «Love as valuing a relationship» (2003), também defendem versões semelhantes, embora não seja de todo claro se classificam o amor como um evento mental ou como um estado mental. Por sua vez, a filósofa Arina Pismenny, num ensaio intitulado precisamente «The amorality of romantic love» (2021), opõe-se a esta perspectiva.


O AMOR É UM ESTADO MENTAL DINÂMICO


A perspectiva historicista


Em «The historicity of Pschological attitudes» (1987), a filósofa Amélie O. Rorty classifica o amor romântico como um processo emocional interactivo entre um sujeito (que ama) e um objecto (pessoa amada). Trata-se de uma forma especial de interdependência emocional que persiste (não é um estado mental episódico) e vai formando um padrão dinâmico de atitudes psicológicas, individuadas pelo carácter do sujeito, pelo carácter do objecto e pela relação entre eles. Esta interacção vai moldando um tipo especial de narrativa emocional, com uma história própria, que não tem de ser causada por intenções nem por algum tipo de controlo voluntário. As emoções envolvidas não formam uma classe natural distinta dos desejos, motivos e de alguns tipos de crenças; o que distingue o amor é o padrão narrativo que daí resulta. Uma versão semelhante à de Rorty é defendida pela filósofa Annette Baier no artigo «Unsafe Loves» (1991).


O AMOR É UMA DISPOSIÇÃO MENTAL


A perspectiva afectiva


O filósofo David W. Hamlyn, no ensaio «The phenomena of love and hate» (1989) classifica o amor como uma pró-atitude emocionalmente motivada. Daí o seu carácter afectivo e disposicional. O amor, diz Hamlyn, é uma das duas emoções primordiais, juntamente com o ódio, que incluem sentimentos positivos e negativos em relação a algo e que estão pressupostos noutras emoções. Uma versão diferente desta perspectiva foi defendida por Robert Brown no livro Analyzing Love (1987).


A perspectiva volitiva-cuidadora


Harry Frankfurt, no seu livro As Razões do Amor (2004, trad. port. Gradiva), classifica o amor como um tipo de estrutura motivacional geradora das preferências que orientam a conduta em relação a outrem. Trata-se, portanto, de uma forma de motivação (disposição) que não é de carácter primariamente emocional, dado não se basear no sentimento sobre a pessoa amada, nem de carácter cognitivo, pois também não depende da opinião sobre a pessoa amada. É antes uma preocupação robusta, e não imparcial (daí que também não seja moral), um cuidado especial pela pessoa amada. Outra versão desta perspectiva é defendida por W. Newton-Smith no ensaio «A conceptual investigation of love» (1989).


A perspectiva volitiva-unificadora


No seu livro About Love - Reinventing Romance for Our Times (1998), Robert Solomon classifica o amor romântico como um compromisso (da vontade) com o mundo, em particular com outra pessoa. Tal compromisso tem em vista a construção de um tipo significativo de união entre pessoas, isto é, tem em vista a criação real de uma nova entidade: um «nós». Trata-se, portanto, da motivação para criar uma fusão unificadora entre duas pessoas. Essa nova entidade, que é um «nós», depende da convergência de vários desejos (sexuais, práticos, românticos, éticos), mas também da imaginação e do desejo de reciprocidade entre as pessoas que decidem unir-se. O amor é, pois, uma escolha, mas uma escolha de carácter emocional. Por isso, o amor não é um sentimento (sentimento e emoção são coisas diferentes) nem se opõe à razão. Robert Nozick, no ensaio «Love's Bond» (1989), e Roger Scruton, no livro Sexual Desire - A moral Philosophy of the erótic (1986), defenderam perspectivas muito semelhantes a esta.


***


Há outros filósofos — e não só filósofos, como, por exemplo, a antropóloga Helen Fisher no seu livro Personal Love (1990) — que escreveram obras relevantes sobre a natureza, o valor ou a justificação do amor, mas também as há sobre a relação entre amor e ética e até entre amor e política. Mas o mapa de posições aqui esboçado diz respeito apenas à ontologia do amor.  


quarta-feira, 25 de junho de 2025

Amor, amor... e mais amor

Jean Vignaud, Abelardo e Heloísa surpreendidos por Fulbert (1819)

Se levarmos a sério o que as pessoas dizem valorizar acima de tudo, o amor é das coisas mais importantes das nossas vidas, senão mesmo a mais importante. Poucos se atrevem, como Nietzsche, a desvalorizar o amor, embora ele o tenha feito em relação a certas concepções comuns do amor, não ao que ele considera ser o amor autêntico.

Mas o que é, afinal, o verdadeiro amor?
 
Esta pergunta pode ser enganadora, pois pressupõe que há apenas um tipo de amor. Os antigos gregos já usavam diferentes termos — eroságape e philia — para falar do que nós dizemos ser amor, concebendo diferentes tipos de amor. Mas, dir-se-á, mesmo que haja diferentes tipos de amor, deve haver algo comum a todas as formas de amor: talvez seja um mesmo tipo de sentimento, ou um objectivo idêntico, ou o mesmo tipo de motivações. Se não houver uma natureza comum a todos os tipos de amor, por que razão usar o mesmo termo para coisas tão distintas?
 
Wittgenstein diria que aplicamos o mesmo conceito a coisas tão diferentes porque muitos dos nossos conceitos não têm limites definidos nem estáveis. Mas ele também acrescentaria que nem por isso temos de deixar de usar tais conceitos, ainda que os apliquemos a coisas tão diferentes, tal como usamos o conceito de jogo para coisas muitíssimo diferentes entre si: lutas (há competição) e paciências (não há competição), golfe (joga-se com bola) e corridas (não há bola), monopólio (jogo de tabuleiro) e corta-mato (joga-se no campo), sudoku (jogo solitário) e futebol (jogo colectivo), escalada (atividade física) e xadrez (atividade mental), esgrima (manejamento de instrumentos) e salto em comprimento (sem uso de instrumentos), corridas de cavalos (jogos com animais) e automobilismo (jogos motorizados), e assim por diante. 
 
Assim, mesmo que não sejamos wittgensteinianos, talvez não seja má ideia começarmos por aceitar a ambiguidade da pergunta «O que é o amor?» e, em vez de falarmos simplesmente do amor, especificarmos antes de que tipo de amor estamos a falar, de modo a não misturarmos tudo. 

Mas de que tipos de amor se pode falar? Há o chamado amor romântico (o eros dos gregos antigos); o amor divino e entre pais e filhos (o ágape dos gregos antigos); o amor pelo próximo e pelos nossos amigos (a philia dos gregos antigos); o amor por ideias, como as de verdade, de liberdade ou de pátria; o amor por lugares, como a terra onde se nasceu; o amor a Deus, para quem tem fé; e o amor-próprio, que uns consideram a forma mais pura de amor e outros uma expressão de narcisismo.

Tudo isso são coisas diferentes. Qualquer pessoa compreende que o amor entre duas pessoas apaixonadas é muito diferente do amor maternal, paternal e filial. Ainda assim, é geralmente o amor romântico que mais tem ocupado poetas, artistas, psicólogos e filósofos. O amor romântico, ou amor-paixão, é o que tem alimentado a arte e a literatura ocidentais. 

O ensaísta e filósofo suiço Denis de Rougemont defende, no seu interessante livro L'Amour et L'Occident, publicado no final dos anos 30 do século passado, que a literatura ocidental se alimenta da infeliz contradição, própria das sociedades ocidentais, entre o amor-paixão e a felicidade conjugal requerida pelo cristianismo. Daí que o adultério seja a principal expressão literária dessa contradição: «a julgar pelas nossas literaturas, o adultério parece uma das ocupações mais importantes a que se dedicam os ocidentais». Não é, pois, do amor realizado que se faz a boa literatura. O amor feliz não costuma dar boa literatura, ao contrário dos perigos da paixão amorosa ardente.
 
O amor romântico alimenta não apenas a literatura, mas todas as artes, no passado ou no presente. Como observou Frank Zappa, no mundo há mais música e canções sobre o amor do que sobre qualquer outro assunto. No entanto, também ele sublinhou que nem por isso o mundo se tornou um paraíso de felicidade amorosa. Talvez Rougemont tenha alguma razão e o amor romântico que encontramos na arte chamada ocidental, mais do que um modelo ou ideal a seguir, seja antes o reflexo da nossa condição cultural: a tensão entre o primitivismo místico da paixão abrasiva e a felicidade da comunhão conjugal cristã. 


Mas, podemos ao menos entender-nos sobre a natureza do próprio amor romântico? Mais uma vez, há quem garanta haver vários tipos de amor romântico. Stendhal, por exemplo, começa por discriminar, na sua obra De l'Amour, quatro tipos de amor: 1) o amor-paixão, dando como exemplos o amor da religiosa portuguesa pelo militar francês e o amor entre Heloísa e Abelardo; 2) o amor-prazer (amour-goût), que difere do anterior na medida em que, neste caso, tudo deve ser agradavelmente cor-de-rosa e o amante nunca perde o pé como acontece frequentemente no amor-paixão; 3) o amor físico, que surge bem cedo na juventude e é predominantemente sensual; 4) o amor-vaidade (amour de vanité), que é o amor cortês e galanteador, uma espécie de exibicionismo amoroso.

Em que ficamos, então? É possível encontrar algum elemento comum a estas expressões do amor romântico? Um mesmo tipo de sentimento? O mesmo tipo de desejo ou de disposição mental? Um certo tipo de motivação? E devemos procurar a resposta no âmbito da psicologia ou antes da filosofia?

Ao refletir sobre a natureza do tempo, Agostinho de Hipona perguntava no livro XI das suas Confissões: «O que é, pois o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; mas se quiser explicar a quem me pergunta, já não sei». 

Será correcto dizer o mesmo sobre o amor?
 
 

sábado, 31 de maio de 2025

Nagel e a ilusão do reducionismo

Os filósofos partilham a fraqueza humana geral por explicações do que é incompreensível em termos adequados ao que é familiar e bem compreendido, embora em tudo diferente.

Como é que é ser um morcego?, 1974

quarta-feira, 2 de abril de 2025

Epidemia de metáforas kitsch


As metáforas estão em alta. Sim, na literatura sempre estiveram. Na boa literatura, uma boa metáfora diz, muitas vezes, mais do que uma descrição exaustiva. E, além de ser mais elegante, tem quase sempre a vantagem de ser memorável. Isso ajuda imenso e é agradável.

Mas não é por isso que estão agora em alta; é antes por terem invadido o discurso banal quotidiano. Qualquer conversa se tornou demasiado seca e linear se não for polvilhada por umas quantas metáforas. Tudo bem. Só é pena que sejam tantas vezes as mesmas metáforas, tão batidas e pretensamente interessantes. Algumas tornaram-se uma verdadeira epidemia, tão previsíveis quanto irritantes. Pior, são quase sempre sobre o próprio falante, que as usa de modo indisfarçadamente autoelogioso e autocomplacente. E tão kitsch!

Veja-se quantas pessoas dizem querer pensar fora da caixa. Ficamos, assim, a saber que há multidões de pessoas criativas, que fazem questão de pensar de maneira diferente dos outros, capazes de ver o que mais ninguém descortina, e assim por diante. Todas igualmente criativas e irreverentes. Assim, o conteúdo da caixa há-de tornar-se um mistério e voltaremos a precisar urgentemente de quem consiga olhar para dentro dela. Claro que a conversa de se pensar fora da caixa é tantas vezes uma desculpa para não se ter o trabalho de estudar e de compreender o que mal se compreende e precisa de ser compreendido. Afinal, dentro da caixa deve encontrar-se o que de melhor já se conseguiu. A caixa foi enchendo à custa de muitas pessoas persistentes, estudiosas, cuidadosas, curiosas, mas também de algumas pessoas criativas. Essas foram, afinal, casos excepcionais. Mas agora já nos sentimos todos excepcionais, mesmo quando ignoramos o fundamental. Ok, talvez faça bem à saúde sentirmos-nos todos excepcionais. Mas, a ânsia de passarmos por seres excepcionais funciona, tantas vezes, como um apelo ao adorno da metáfora kitsch

Se aquele que se apresenta como criativo diz querer pensar fora da caixa, o que se apresenta como corajoso e ousado — que costuma ser o mesmo — diz querer sair da sua zona de conforto. E, ao querer sair da sua zona de conforto, acaba por entrar, de novo, na zona kitsch. Por que razão haverá tanta gente a querer sair da sua zona de conforto em vez de simplesmente fazer o que pode fazer bem, usando o conhecimento e a experiência adquiridos? Não é mais sensato, produtivo e preferível fazer uma coisa bem ao desperdício e desconforto de fazer outra mal? Para quê sair da sua zona de conforto? Para quê desperdiçar tempo e energias com o que não se sabe como fazer? Para aprender outras coisas? Muito bem, então basta dizer simplesmente que se quer aprender outras coisas. Isso tem a vantagem de nos poupar a mais uma metáfora kitsch. Mas porquê este apelo do discurso kitsch?

O que responder quando não se sabe a resposta? Fingir que se tem uma resposta, dizendo que essa é a pergunta de um milhão de dólares. E depois falar abundantemente da pergunta de um milhão de dólares. Pensando bem, as perguntas de um milhão de dólares são tantas, que podemos ganhar uma fortuna dando-lhes meias-respostas kitsch.

Claro que os verdadeiros intelectuais, os intelectuais profundos, não alinham nisto; não usam as metáforas da populaça. O seu discurso sofisticado evita a superficialidade quotidiana, procurando ir para lá do ruído do mundo, de modo a compreender a espessura dos dias. Este é todo um outro nível. E tive a sorte de, só na última semana, já me ter deparado mais de uma vez com o ruído do mundo, tendo também embatido na dita espessura dos dias. E não, não li nas crónicas do Pacheco Pereira.

Enfim, cada um com o seu kitsch. Eu também tenho o meu. A prova disso é este texto que me deu na cabeça escrever para mim próprio. Também tenho direito, caramba!