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domingo, 29 de setembro de 2024

Debate perene: seremos fatalmente livres?

Infelizmente, só depois de ter ocorrido me dei conta da apresentação do livro Filosofia Perene, de João Carlos Silva, feita pelo Desidério Murcho. Confesso que, exceptuando as ligações que coloco no Facebook para os posts deste meu blog, raramente lá volto. A não ser quando, como aconteceu agora, alguém me recomenda ir lá ver algo. 

Foi assim que dei com a gravação da apresentação, que o João Carlos Silva disponibilizou no FB.

O Desidério fez uma breve apresentação de cada um dos ensaios do livro, detendo-se mais detalhadamente em dois deles: os ensaios sobre a ética da guerra e sobre o necessitarismo metafísico. Foi a propósito deste último, onde o João Carlos discute as implicações desta perspectiva para o debate sobre o livre-arbítrio, que o Desidério destacou uma ideia aí sugerida e que ele rejeita.

A ideia que o Desidério rejeita é a expressa pela seguinte condicional: se não tivéssemos livre-arbítrio, não seríamos moralmente responsáveis por nada do que fazemos. Esta é uma objecção habitual à tese de que o livre-arbítrio não passa de uma ilusão: como pode ser uma ilusão, uma vez que somos, sem dúvida, moralmente responsáveis? Isso seria absurdo, diz-se. Claro que temos livre-arbítrio, caso contrário o que seria da responsabilidade moral? Ora, o Desidério defende ser irrelevante termos ou não termos livre-arbítrio, pois mesmo que não tenhamos livre-arbítrio, na prática isso não acarreta qualquer mudança nas nossas vidas, que continuarão a ser exactamente como sempre foram. Num certo sentido, continuamos a ter de decidir se algumas pessoas devem ou não ser presas, se devem ou não ser censuradas, etc. Assim, se eventualmente se viesse a descobrir, sem margem para dúvidas, que não temos livre-arbítrio, continuaríamos a ter de tomar o mesmo tipo de decisões que sempre tivemos de tomar. 

Em resposta, o João Carlos começa por aceitar o argumento do Desidério, acrescentando que pretendeu mostrar antes a incoerência filosófica (não prática) de defender simultaneamente uma perspectiva metafísica necessitarista (como o fatalismo), segundo a qual o livre-arbítrio é impossível, e a perspectiva de que somos moralmente responsáveis. Parece, afinal, que o João e o Desidério estão a defender coisas subtilmente diferentes acerca de questões também elas subtilmente diferentes. 

Prolongando um pouco o debate em benefício de uma melhor compreensão do que está em causa, penso que seria útil tentar esclarecer melhor o que se entende por livre-arbítrio e também por responsabilidade moral, pois o argumento do Desidério apoia-se, em parte, na aparente vagueza de tais noções, como ele mesmo refere. Por sua vez, o argumento do João Carlos parece assumir que tanto a noção de livre-arbítrio como a de responsabilidade moral são razoavelmente transparentes. 

De certo modo, têm ambos razão. Por um lado, há diferentes noções de livre-arbítrio e também de responsabilidade moral, o que torna ambos os conceitos algo escorregadios. Por exemplo, o conceito de livre-arbítrio tanto pode ser definido como a capacidade de fazer o que se deseja sem constrangimentos externos (Hobbes, Hume), como em termos de possibilidades alternativas (van Inwagen, Ginet), como em termos de autocontrolo (Frankfurt, Dennett), como em termos de agir em função de razões apropriadas (John Martin Fisher), entre outras maneiras. Mas, por outro lado, podemos ficar apenas com uma destas abordagens, caso em que ficamos com uma noção de livre-arbítrio razoavelmente clara. 

Isso leva-me a pensar que iniciar a discussão com a condicional «se não tivermos livre-arbítrio, não somos moralmente responsáveis» é quase como arrancar o carro com o travão a fundo, pois temos de parar imediatamente para esclarecer o que é isso de ter livre-arbítrio. Se adoptarmos a noção de livre-arbítrio de van Inwagen, aquela condicional é verdadeira. Mas se adoptarmos a noção de livre-arbítrio de Frankfurt, aquela mesma condicional é falsa. Dito de outro modo, se adoptarmos uma perspetiva incompatibilista (a perspectiva de que não podemos ter livre-arbítrio, caso todos os acontecimentos sejam causados por acontecimentos anteriores), a condicional é verdadeira; mas se adoptarmos uma perspectiva compatibilista (a de que é possível termos livre-arbítrio, mesmo que todos os acontecimentos sejam causados por acontecimentos anteriores), então a condicional é falsa. Assim, talvez seja mais promissor começar antes pela questão do determinismo, que não levanta grandes dúvidas, permitindo tornar mais claras e debatíveis as perspetivas de cada um. 

Sendo assim, concordo com o Desidério que muitos deterministas não vêem qualquer dificuldade em responder à objecção da responsabilidade moral. Como diz a cientista Sabine Hossenfelder: se descobríssemos agora que não temos realmente livre-arbítrio, então ficaríamos também a saber que nunca tivemos realmente livre-arbítrio. Qual a diferença, então? Afinal de contas, tudo funcionou como se tivéssemos livre-arbítrio, mesmo sendo ele uma ilusão. Por que razão haveria agora de ser diferente? Continuaríamos a tomar decisões, tal como o meu telemóvel decide, obedecendo a regras pré-estabelecidas, que mensagens são enviadas directamente para o lixo e quais me são dadas para ler.

Provavelmente, também o João Carlos tem razão quanto à incoerência do fatalista que reclama responsabilidade moral para as pessoas. Em todo o caso, o fatalismo é uma perspetiva tão misteriosa, que dificilmente não dispõe de uma justificação misteriosa para isso. Sartre não disse que somos fatalmente livres?

domingo, 22 de setembro de 2024

Tolstói sobre a essência da arte

 

Esgotada a anterior edição deste clássico da filosofia da arte, eis que surge agora uma reedição revista. Não só a capa é agora bastante mais sugestiva como a minha introdução à tradução portuguesa (directamente do russo) foi revista e afinada.  

Este ensaio, que o próprio Tolstói considerava um dos livros mais importantes que escreveu, merece até mais do que uma leitura. Aliás, uma característica notável dele é que, passados mais de cento e vinte anos da sua publicação, continua a não deixar o leitor indiferente nem perdeu a sua capacidade para continuar a causar perplexidade nos leitores actuais.

O livro estará nas livrarias já nesta semana. 

Eis um pequeno excerto da minha introdução.

          Publicado em 1898, depois de quinze anos a trabalhar nele, o ensaio O Que é a Arte? surge na parte final de um século marcado por grandes ideologias e ideais revolucionários, por vezes incompatíveis, tanto em termos sociais e políticos como artísticos e estéticos. Como qualquer outro aspecto da vida social, também o papel da arte e o lugar do artista na sociedade acabaram por ter de ser reequacionados. Por isso, os próprios artistas, mais do que os filósofos, sentiram necessidade de justificar a importância da sua actividade e o papel que lhes cabia desempenhar. Não é, pois, de estranhar que as principais teorias acerca do valor e da função da arte  questões claramente filosóficas — tenham como protagonistas mais destacados os artistas ou críticos de arte e não tanto os filósofos profissionais. Daí que algumas das mais influentes ideias estéticas do século XIX estejam normalmente associadas a movimentos artísticos e literários, como o romantismo, o realismo e o esteticismo.

            O romantismo — que começou na literatura, alargando-se depois à pintura, escultura e, por fim, à música — foi, sem dúvida, o mais influente, duradouro e abrangente movimento artístico do século XIX. São muitas as ideias defendidas pelos românticos, algumas das quais vêm de trás. Mas aquela que mais sobressai é a ideia de que a matéria-prima da criação artística é a emoção e o seu carácter estritamente subjectivo. A função do artista, de acordo com o romantismo, não é retratar a realidade objectiva exterior, mas antes penetrar nas profundezas do universo interior de sentimentos de que ele mesmo tem experiência. Descrever a natureza física exterior ou a realidade objectiva era o que a ciência estava já a fazer, aparentemente com enorme sucesso — um sucesso nunca visto até então. Contudo, esse sucesso deixava completamente inexplorado o mundo, não menos complexo, diversificado e importante, dos sentimentos. A compreensão desse mundo só poderia ser alcançada por intermédio da arte e só o artista estaria apto a encontrar a melhor forma de exprimir sentimentos. Sendo assim, torna-se bastante fácil justificar o papel do artista na sociedade e a importância ou o valor da arte: esta é, afinal, uma forma de obter conhecimento acerca daquilo que não está ao alcance da ciência.

            Associada à concepção da arte como expressão de sentimentos, foi-se desenvolvendo uma dada imagem do artista romântico: por um lado, passa a ser visto como uma figura atormentada, obrigada a experimentar, em nome da sinceridade que se lhe exige, os sentimentos que exprime, por mais contraditórios e dilacerantes que sejam; por outro lado, passa também a ser visto como um génio incompreendido, na medida em que exprime o que mais ninguém ousaria exprimir. Isto, por sua vez, acaba por colocar o artista, mais do que a própria obra, no centro das preocupações românticas. 

            Em sentido oposto, surge o realismo. Este movimento, que aparece em meados do século XIX, é uma reacção declarada a uma arte que, como queriam os românticos, fecha os olhos ao que está diante de si, ao que se passa na sociedade e ao mundo das pessoas comuns, incluindo os pobres e os explorados. Ao passo que os românticos se entregam a uma arte sem consciência social, os realistas batem-se por uma arte socialmente responsável. A imagem do artista ensimesmado, própria do romantismo, deveria, pois, dar lugar à do artista socialmente empenhado, senão mesmo do artista revolucionário.

            Como se verá, Tolstói é claramente influenciado por ambos os movimentos, mas está longe de se rever em qualquer deles. A sua teoria da arte como expressão de sentimentos aproxima-o do romantismo, mas em tudo o resto se demarca de forma muito vincada, nomeadamente ao defender que nem todos os tipos de sentimentos contam e, sobretudo, que a finalidade da expressão é moral (é o progresso moral da humanidade) e não epistémica (não é o conhecimento do que se passa no interior do sujeito). A própria ideia do artista romântico como génio incompreendido e ensimesmado o repugna mais do que qualquer outra, alegando que um artista assim não só não serve a arte como lhe é mesmo prejudicial, na medida em que é responsável por colocar simulacros de arte no lugar da arte autêntica. Algumas das páginas mais contundentes de O Que é a Arte? visam precisamente desmascarar de forma impiedosa o que considera ser a falsa arte de algumas das mais sonantes obras do romantismo: a Nona Sinfonia e a Sonata Opus 101, de Beethoven, bem como toda a tetralogia de O Anel, de Wagner.

            Por sua vez, ao defender uma concepção da arte completamente oposta ao tipo de preocupações próprias das classes ricas e de pessoas ociosas, Tolstói aproxima-se do realismo: a arte autêntica, considera ele, dá voz a sentimentos comuns, mas genuínos, das pessoas simples e trabalhadoras do povo. Os poucos exemplos, dados por Tolstói, de arte genuína ou de boas obras de arte da sua época são, na sua maioria, de obras associadas ao realismo: pinturas de Millet e Lhermitte, alguns romances de Dickens e de Dostoievski e Os Miseráveis, de Victor Hugo (refere também canções de embalar, danças e histórias populares, quase sempre de autoria anónima, mas amplamente difundidas entre o povo e as classes trabalhadoras). Mesmo assim, exceptuando aqueles dois pintores, nenhum dos outros são exemplos indisputáveis de realismo. Em contrapartida, refere de forma algo depreciativa autores claramente realistas, como Émile Zola, ignorando completamente Balzac, Stendhal ou Flaubert, e dando o benefício da dúvida a Maupassant. 

            Mas há um outro importante movimento estético do seu tempo com o qual Tolstói não tem mesmo qualquer afinidade, opondo-se-lhe totalmente: o movimento da arte pela arte, encabeçado por Théophile Gauthier, também conhecido como esteticismo. Este movimento baseia-se numa concepção não-funcionalista da arte, isto é, uma concepção da arte segundo a qual ela não serve qualquer outro propósito exterior a si mesma. É a arte que dá a si a sua finalidade, pelo que se justifica por si mesma. A ideia subjacente é que a arte tem valor intrínseco e que isso é, em termos sociais, justificação suficiente para merecer a mais elevada estima. 

            Tolstói considera isto uma completa perversão da arte e dá vários exemplos de arte simbolista que ilustram a vacuidade da teoria da arte pela arte. Obras de Jean Moréas, Baudelaire, Mallarmé, Verlaine e outros são apontadas como meras imitações de arte — nem sequer má arte são. E o mesmo em relação às pinturas simbolistas de Odilon Redon, Puvis de Chavannes e outros. A arte decadentista é outro dos alvos de Tolstói. Os decadentistas, como Oscar Wilde, acreditam que a arte nunca deve ser avaliada por critérios morais. O decadentismo — que, segundo Tolstói, também encontra apoio em algumas ideias de Nietzsche — acaba por ser como que um prolongamento do esteticismo: de acordo com os esteticistas, a arte tem valor autónomo; de acordo com os decadentistas, a arte não só tem valor autónomo como nem sequer pode haver obras de arte morais ou imorais. Para os decadentistas, a arte e a moral são independentes uma da outra. Nada poderia ser mais contrário ao que defende Tolstói, para quem a questão do valor da arte encontra resposta numa forma extrema de moralismo.

            Esta é, muito genericamente, a posição de Tolstói em relação às principais ideias estéticas surgidas no seu conturbado século. Havia ainda concepções estéticas vindas do século anterior e que continuavam a ter os seus adeptos. Entre essas concepções destacavam-se a estética kantiana do belo, entretanto reciclada por Schopenhauer, e a metafísica do belo hegeliana, a qual, nas palavras de Tolstói, o mesmo Schopenhauer mostrou não passar de puro misticismo. Como se verá adiante, Tolstói rejeitava também estas estéticas, as quais padeciam do vício fatal de se basearem nas noções de beleza e de prazer, que, para ele, iam dar ao mesmo. Por sua vez, obras que procuravam um certo equilíbrio formal — outra ideia de inspiração kantiana —, eram igualmente desclassificadas por Tolstói, acusando-as de serem demasiado racionais e por carecerem de algo que é uma condição necessária da arte: a capacidade de contagiar as pessoas com os sentimentos vividos pelo artista.

            Em suma, nem o romantismo, nem o realismo, nem o esteticismo, nem Kant, nem Hegel, nem Schopenhauer, nem Nietzsche conseguem oferecer qualquer resposta minimamente satisfatória para as questões da essência e do valor da arte, que Tolstói pensa estarem estreitamente ligadas. Essa foi, provavelmente, a motivação que o levou a escrever este ensaio, no qual fica bem patente a singularidade do seu pensamento estético num século em que não faltaram teorias estéticas.


quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Filosofia perene e o valor intrínseco da filosofia


Comecei hoje mesmo a ler Filosofia Perene (Lisbon International Press), o último livro do fiel amante da filosofia João Carlos Silva. Acabado de me chegar, só ainda tive tempo de ler a introdução, o quinto ensaio, sobre o valor intrínseco do conhecimento teórico, e algumas outras páginas soltas. Mas já deu para saborear a colheita ainda antes de ter tempo de beber o resto do néctar filosófico.

Realço já três aspectos importantes. O primeiro é a confirmação de que João Carlos Silva é motivado apenas por um genuíno interesse filosófico, aliado a uma evidente autenticidade intelectual. Apesar de a pessoa de João Carlos Silva nunca se esconder por detrás das ideias apresentadas, como se torna claro logo no carácter pessoal da introdução, o autor não quer ser mais do que o veículo dessas ideias. Está, portanto, bem longe da retórica filosófica narcisista, própria de quem encara a actividade filosófica como um instrumento de prestígio intelectual ou de reconhecimento social; ele obedece apenas ao desejo que alimenta o seu amor pelo conhecimento. Daí não sermos bombardeados com exibições de erudição académica nem com descobertas impressionantes. O que João Carlos Silva nos propõe é uma reflexão sóbria sobre problemas filosóficos genuínos, para chegar a uma resposta fundamentada. Isto pode parecer banal, mas não deixa de ser raro, o que faz de João Carlos Silva um caso especial do panorama editorial do país filosófico. Claro que as suas respostas são discutíveis. 

Mas isso é também um ponto a seu favor, o que me leva ao segundo aspecto: assumindo-se sem receios como filósofo, João Carlos Silva, não se limita a mastigar ideias já digeridas, arriscando um pensamento próprio, ainda que historicamente atento. Não é um pensamento próprio no sentido de procurar defender teses filosoficamente originais, mas antes de avaliar por si próprio a plausibilidade de algumas delas e de procurar mostrar que há caminhos mais bem pavimentados do que outros. E tem a vantagem de o fazer sem se deixar cair na vã tentação de impressionar o leitor com um jargão técnico tantas vezes dispensável. 

Deixo para o fim um aspecto interessante relacionado com o único ensaio completo que já tive a oportunidade de ler, no qual João Carlos Silva defende que «o conhecimento teórico tem valor em si mesmo». O ensaio suscitou-me algumas dúvidas, o que é bom sinal. Ele começa por esclarecer o que geralmente se entende por conhecimento teórico em oposição ao conhecimento prático, ilustrando a distinção com exemplos. Vale a pena notar que a ideia não foi, como poderia ser, a de distinguir o conhecimento proposicional (teórico) do saber-que (conhecimento prático), ou se um pode ser reduzido ao outro. Tratou-se simplesmente de comparar o valor do conhecimento puro (teórico) com o valor do conhecimento instrumental (prático). Embora, a certa altura, me tenha parecido que pretendia mostrar que o conhecimento teórico e o conhecimento prático não deveriam ser entendidos como opostos, a tese principal de que o conhecimento teórico, diferentemente do prático, tem valor intrínseco parece assentar na ideia de que são efectivamente distintos. Ora, não seria o caso se todo o conhecimento teórico tivesse, de algum modo, interesse prático. A afirmação de que o conhecimento teórico se distingue do prático por ainda não se encontrar para o primeiro qualquer aplicação útil imediata não implica que eles sejam essencialmente distintos, dado que a diferença seria simplesmente a de, num caso, a utilidade ser apenas mais evidente e imediata do que no outro. O próprio João Carlos avança com vários exemplos de conhecimento teórico que muito depois veio a ter importantes aplicações práticas. Daí que mesmo o conhecimento para o qual ainda não se vislumbram quaisquer aplicações práticas não deixe, em princípio, de ter valor instrumental. Ora, isso milita a favor da ideia de que todo o conhecimento é, em princípio, instrumental. Contudo, admito que isto não derrota completamente a tese de João Carlos Silva de que o conhecimento teórico possui valor intrínseco, uma vez que as duas teses (a de que todo o conhecimento tem valor instrumental e a de que há conhecimento que tem valor intrínseco) não são inconsistentes: é perfeitamente possível algo ter simultaneamente valor instrumental e também valor intrínseco. Acredito que o conhecimento é um caso desses.

Resta-me agradecer ao João Carlos Silva por não deixar de suscitar discussão com o seu livro Filosofia Perene, que bem consegue ilustrar a perenidade dos problemas filosóficos.   

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Capas de discos

Entre os discos de vinil e os CD, o que é melhor? Pessoalmente não tenho grandes dúvidas de que o CD ganha em quase todos os aspectos. Menos num: as capas. Mas as capas não são meros invólucros, permitindo unir de forma feliz a arte sonora à arte visual.

Quantas vezes não se compraram discos apenas pelas capas? E quantas capas não acabam por ser um excelente incentivo para ouvir o que está lá dentro? Muitas capas adquiriram uma importância estética que vai além do próprio conteúdo musical, dando origem a um tipo sui generis de arte visual, que tem contado com a inspiração de importantes artistas plásticos contemporâneos, fotógrafos de arte, ilustradores e artistas gráficos de primeiro plano. As próprias capas são matéria de criação artística, como algumas obras do artista plástico Christian Marclay, feitas de colagens de capas de álbuns de pop e rock.

Apresento aqui uma perspectiva pessoal da história das capas, organizada por temas, tentando combinar o gosto pessoal com a relevância histórica e estética. 


As capas anteriores são, por diferentes razões, difíceis de classificar, começando pela primeira capa da história da edição discográfica, concebida em 1940 pelo designer gráfico americano Alex Steinweiss para o disco Smash Hits From Rodgers & Hart, da Columbia Records. Antes disso, os discos eram simplesmente metidos numa espécie de envelope de papel com a indicação dos artistas e obras, até Steinweiss ter a ideia de usar papel duro com uma imagem colorida. Insistiu que isso iria aumentar as vendas dos discos. E teve razão. Curiosamente, vinte e oito anos mais tarde, os Beatles ousaram provocatoriamente regressar à pré-história lançando um álbum duplo com capa totalmente branca e sem qualquer inscrição. Enfim, coisas que, então, só os Beatles ousariam fazer. Uma capa inovadora foi também a de Thick As A Brick, dos Jethro Tull, que o vocalista Ian Anderson diz ter levado mais tempo a produzir do que a própria música do disco. Destaco ainda o simbolismo minimal de Blackstar, a despedida póstuma de David Bowie.   


O primeiro, e talvez mais importante, salto estético no cuidado artístico das capas dos discos foi dado nos anos de 1950-1960 pela Blue Note, a famosa editora americana de jazz. Aí se destacou sobretudo a arte de Reid Miles, muitas vezes trabalhando a partir das fotografias de Francis Wolff. Continuam ainda a ser das melhores e mais inspiradas capas de discos. Inspiraram, por exemplo, artistas posteriores como Joe Jackson (veja-se, por exemplo, a capa do seu álbum Body and Soul, que é uma cópia descarada de Volume 2, de Sonny Rollins). Outro exemplo é o do ilustrador francês Serge Clerc, que cria um belo desenho retro na capa do excelente álbum de Carmel The Drum Is Everything, também inspirado na estética da Blue Note.   


Andy Warhol (Velvet Underground e Rolling Stones), Bridgit Riley (Faust), Keith Haring (Sylvester), Robert Rauschenberg (Talking Heads), Gerhard Richter e Richard Prince (Sonic Youth), Banksy (Blur), Kara Walker (Arto Lindsay) Mr. Brainwash (Madonna), Jenny Savile (Manic Street Preachers), Damien Hirst (Red Hot Chili Peppers), Jeff Koons (Lady Gaga) e Jean-Michel Basquiat (The Strokes) são apenas alguns exemplos de renomados artistas plásticos cujas obras encontramos em capas de discos. Algumas dessas obras foram criadas de propósito.
  

Barney Bubbles (trabalho fotográfico de Twangin..., de Dave Edmunds) e Vaughan Oliver (This Mortal Coil) são dois dos nomes sonantes do uso da fotografia artística nas capas de discos. Por vezes acrescenta-se ao trabalho fotográfico a mão de grandes designers como Peter Saville (Roxy Music) e Storm Thorgerson, do grupo Hipgnosis (Led Zeppelin).


Outros recorrem ao desenho e à pintura originais, mas também ao uso de obras clássicas. Das capas aqui incluídas, aprecio especialmente a simplicidade do desenho dos discos dos Muse e de Paul Bley. Por sua vez, a capa do primeiro álbum dos The Stone Roses reproduz uma tela pintada por John Squire, o guitarrista da banda, que se dedicava também à pintura. Neste caso, o expressionismo abstracto de Pollock foi claramente a inspiração.  


O puro grafismo e a cor passaram a ser amplamente usados, sobretudo depois de The Dark Side Of The Moon (Hipgnosis) e de Autobahn dos Kraftwerk (que não é exactamente a da edição original e que uns atribuem a Barney Bubbles e outros a Johann Zambryski). Mas talvez ninguém se tenha destacado tanto nessa estética como Peter Saville, da Factory (Joy Division, OMD, A Certain Ratio). 


Noutras capas são os nomes e os títulos que se destacam, combinados ou não com outros elementos. Pioneira nesta área é a capa do álbum de 1957, de Elvis Presley, mais tarde imitada pelos The Clash e, com algumas variações, por Tom Waits. Outro exemplo marcante é a capa do álbum dos Sex Pistols, de Jamie Reid. Considero muito feliz a combinação da imagem retro a preto e branco com a estética gráfica soviética dos Franz Ferdinand.  


Os retratos e as caras dos artistas também têm dado excelentes capas de discos, como a de Horses, de Patti Smith, fotografada pelo seu amigo Robert Mapplethorpe ou a foto de Irving Penn para Tutu, de Miles Davis. 


Também as imagens das bandas ou grupos têm proporcionado capas notáveis. Destaco em particular as excelentes fotos das capas dos Abba e dos Oasis. E, mais uma vez, as fotografias de Mapplethorpe para a capa dos Television (já agora, Marquee Moon é, na minha opinião, um dos melhores álbuns de rock de sempre). 


Usar imagens de rua ou de exteriores nem sempre resulta, mas todas estas capas são bastante fortes, começando pela memorável travessia da passadeira de Abbey Road (uma obra-prima da música contemporânea, já agora!), continuando com outra obra-prima de David Bowie e terminando com as cinematográficas capas dos Depeche Mode e do último disco de Caroline Polachek.


No psicadelismo procura-se que as as capas sejam uma ilustração visual da música que está lá dentro (uma ressalva para os casos dos Kinks e The Mothers of Invention, cujo psicadelismo vai pouco além das próprias capas). Não sei se isso foi alguma vez conseguido, pois julgo que ninguém conseguiu esclarecer com precisão o que é o psicadelismo. Dizer que se trata da experiência das alterações perceptivas provocadas pelos ácidos, formando uma espécie de caleidoscópio de cores e formas fluídas, inacessíveis à experiência consciente normal, ou algo do género, parece-me pouco esclarecedor. Mas talvez seja mesmo essa a ideia. Em todo o caso, considero que o psicadelismo não deu origem a capas esteticamente muito interessantes. Nem mesmo a histórica capa de Peter Blake para Sargeant Pepper´s me parece esteticamente impressionante. As capas dos Hollies, dos Cream e principalmente dos MGMT, são francamente más. Incluo-as aqui por serem exemplares de discos psicadélicos de referência e não pelos seus méritos estéticos ou artísticos. 


O chamado rock progressivo costuma distinguir-se também pelas imagens das capas. As capas fantásticas de Roger Dean para os Yes são um exemplo disso. Talvez a capa dos ELP (um dos mais vacuamente extravagantes grupos de música progressiva) seja mais facilmente associada a outros estilos musicais, mas mas a arte de H. R. Geiger não deixa de se destacar. E merece também uma referência o trabalho gráfico com um toque humorístico de Breakfast In America, dos Superaramp, concebido por Michael Doud.


Tanto a música gótica como a metálica têm os seus próprios universos temáticos, em que o som, a imagem e as palavras são pensados como partes de um todo coerente. Claro que góticos e metálicos habitam mundos diferentes, mas convergem em alguns aspectos. Estas capas representam diferentes tendências dentro do mesmo universo, mas as capas de Derek Riggs para os Iron Maiden são imediatamente identificáveis.


Para terminar, algumas capas que não se enquadram em nenhuma das categorias acima, mas merecem um destaque especial. E muitas outras poderiam ser referidas, o que dá uma ideia da riqueza artística das capas de discos. É isto que falta aos CD. 

 

sábado, 14 de setembro de 2024

Plano pessoal de leitura

Parece que os clássicos foram a porta de entrada de muitos para o mundo da leitura. Mesmo que não tenham sido os clássicos da literatura ocidental (consta que Freud já lia Platão em grego ainda antes dos dez anos de idade), muitos começaram pelos clássicos da chamada literatura infanto-juvenil: O Principezinho, A Volta ao Mundo em 80 Dias, as Aventuras dos Cinco, As Aventuras de Pinóquio, As Aventuras de Tom Sawyer, As Aventuras de Gullliver, etc.  

Não foi o meu caso. A minha entrada deve-se aos pequenos livros de cowboys que os mais velhos emprestavam aos mais novos. Cabiam no bolso das calças e os seus autores não ficaram para a história. Um desses autores era o misterioso Ross Pynn, que era afinal um tal Roussado Pinto. Estou a falar dos livros da colecção 6 Balas e também do Texas Jack, que eram histórias passadas no farwest americano. Tinham de ser encomendados por carta (com o dinheiro lá dentro) e chegavam pelo correio quase duas semanas depois à pacata aldeia do interior. Como eram vários amigos a poupar uns tostões para encomendar, acabava por haver uma quantidade apreciável de livros para a troca entre nós. Claro que, ao fim de umas dezenas de livrinhos, dava para ver que eram quase sempre as mesmas histórias. 

Foi, então, preciso passar para algo mais subtil, misterioso e sofisticado: os policiais da Colecção Vampiro. Aqui já havia autores de respeito, como Georges Simenon, Agatha Christie, Dashiell Hammett, Rex Stout, Patricia Highsmith, Raymond Chandler e Earle Stanley Gardner. Este publicava também sob os nomes A. A. Fair e S. S. Van Dine. 

O passo seguinte foi dado com os livros do Círculo de Leitores, de venda ao domicílio para subscritores. Mas só depois de várias decepções (por exemplo, A Peste, de Camus) é que fiquei verdadeiramente entusiasmado com duas grandes obras literárias: Bel-Amy, de Maupassant, e As Vinhas da Ira, de Steinbeck.

Entretanto, este filão acabou por ser interrompido pelo 25 de Abril. Aí foi inevitável ler sobre política e ler também os autores revolucionários que a «carrinha dos livros» (isto é, a biblioteca itinerante da Gulbenkian) trazia uma vez por mês. Foi, então, a altura de ler Baal Babilónia, do anarquista espanhol Arrabal, o Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels, e outras coisas que agora não interessam a quase ninguém, como O Que é a Política?, de Julien Freund (como era incrivelmente má a capa deste livro!).

E assim se fez um plano pessoal de leitura.


  

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

A lógica é tão limitada!

Tantas vezes ouvi este desabafo: 

«Qual o interesse de ensinar lógica aos adolescentes aprendizes de filosofia? É errado submeter a filosofia à frieza linear e mecânica da lógica! A lógica é, de resto, bastante limitada e nem tudo se pode reduzir à lógica.»

A pergunta é perfeitamente justificada e o tema merece ser debatido. No entanto, o resto do desabafo assenta em dois pressupostos duvidosos. Mas um deles não é o de que a lógica é limitada. Isso é uma verdade; uma trivialidade, diria mesmo. 

Claro que a lógica é limitada! E ainda mais se pensarmos na pequeníssima parte da lógica que se ensina no secundário. Basta ver que as ferramentas de lógica proposicional dadas no secundário não são muito mais complexas nem mais extensas do que a aritmética básica que os alunos aprendem na escola primária. A lógica que se ensina no secundário é mais ou menos comparável às operações algébricas elementares aprendidas na escola primária: adição, subtracção, multiplicação, divisão e igualdade. Quanta matemática não fica de fora também aí? 

Ainda assim, qualquer um reconhece que, apesar de limitada, essa matemática básica não deixa de ser imprescindível para resolver muitos dos seus problemas práticos quotidianos: por exemplo, para descobrir quantos lápis pode comprar com o dinheiro que a mãe lhe deu ou para confirmar se o troco que lhe dão está certo. Claro que ainda não dá para resolver complexas equações de terceiro grau nem para calcular a raíz quadrada de um número.

Porquê, então, afirmar a banalidade de que a lógica é muito limitada? Será que alguém pensa que a lógica que se ensina é toda a lógica? Há muitíssima mais lógica para estudar do que isso. E só quem procura aprofundar o seu estudo está em condições de reconhecer quais são exactamente as suas reais limitações, que não são poucas. Daí que, ao contrário do que muitas vezes se pensa, também na lógica haja intenso debate e divergências fundamentais. E muitas discussões não são apenas sobre os aspectos mais recônditos e rebuscados da lógica. Coisas como os princípios da não-contradição e o do terceiro excluído ou a semântica de algumas condicionais têm sido amplamente debatidas, dando mesmo origem a sistemas lógicos  alternativos à lógica clássica, rejeitando vários aspectos desta. 

Para se ter uma ideia, veja-se o esquema acima. Comecei a elaborar esse esquema há uns anos, depois da leitura de Deviant Logic, de Susan Haack, um livro de 1974. Fui lendo outros livros sobre lógica e, tendo em mente uma acção de formação de lógica para colegas entretanto agendada, acabei por concluir a tarefa. 

É importante sublinhar que mesmo este esquema não inclui toda a lógica, o que permite ter uma ideia do vasto universo que constitui a modelação do raciocínio comum.

Aceitam-se eventuais correcções ao esquema. Dado que foi feito por mim, é possível que alguém encontre imprecisões. Devo dizer que não sou um especialista (nem grande nem pequeno!) em lógica, mas tenho o prazer de conhecer várias pessoas muitíssimo mais entendidas no assunto do que eu, com as quais também tenho aproveitado para aprender.    

sábado, 7 de setembro de 2024

Distinguir os justos dos pecadores

Tanto os pecadores como os justos são, por vezes, fracos. A diferença entre eles está em que um homem insignificante, ao fazer uma coisa boa, se orgulha disso toda a sua vida, enquanto o justo, ao fazer o bem, nem dá por isso; mas, durante anos, não esquece um pecado que cometeu.

Talvez nem sempre seja exactamente como pensa Viktor Strum, a personagem mais marcante da obra magna de Vassili Grossman. Em todo o caso, Vida e Destino é um livro onde cabe quase tudo; é muito mais do que uma longa reportagem da maior e mais violenta batalha do século XX.

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Durante a guerra discute-se estética

Durante a guerra não se limpam espingardas, mas discute-se estética!

É precisamente isso que os soldados soviéticos fazem no famoso bunker do prédio 6/1 de Estalinegrado durante o longo cerco das tropas nazis e quando o som dos morteiros inimigos abranda. Na discussão entram em confronto as perspectivas revolucionária e pré-revolucionária. 

         Nos momentos de acalmia, os moradores do prédio discutiam, sem pressa e em pormenor, o aspeto físico da radiotelegrafista. Batrakov que, aparentemente, não era dessas coisas e ainda por cima era míope, mostrou estar ao corrente de todos os aspetos da beleza de Kátia.

         — Numa dama, o peito é, para mim, o essencial — disse ele.

         O artilheiro Koloméitsev insurgiu-se — como Zúbarev tinha dito sobre ele, e muito bem, preferia «chamar os bois pelos nomes».

         — Então, conversaram sobre o gato? — perguntou Zúbarev.

         — Evidentemente — respondeu Batrakov. 

         — Chega-se ao corpo da mãe através da alma do filho. Até o nosso velho disse uma palavrinha relativamente ao gato.

         O velho atirador de morteiro cuspiu e passou a mão pelo peito.

         — Onde é que ela tem, aqui, tudo o que compete a uma rapariga pelo regulamento? Onde, pergunto eu?

         Ficou especialmente irritado quando ouviu insinuações de que o próprio Grékov gostava da radiotelegrafista.

         — É claro, nas nossas condições até uma Katka como esta serve, quem não tem cão caça com gato. Pernas compridas como as do grou, traseiro, nicles. Olhos grandes como os de uma vaca. Que pedaço de rapariga é esta?

Tchentsov, objetando, disse:

          — Para ti há de ser peituda. É um ponto de vista ultrapassado, pré-revolucionário.

         Kolomeitsev, desbocado e amante das obscenidades, que reunia na sua volumosa cabeça grisalha inesperadas particularidades e características, dizia, rindo-se e semicerrando os turvos olhos cinzentos:

         — A rapariga é boa, mas eu, por exemplo, faço uma abordagem especial da coisa. Para mim, pequenas, arménias e judias, com grandes olhos, ágeis, rápidas, de cabelo curto.

         Zúbarev olhou pensativamente para o céu escuro, colorido pelos projetores, e perguntou baixinho:

         — É curioso, como é que vai acabar esta coisa?

         — A quem vai ela calhar? — perguntou Koloméitsev. — Ao Grékov, com certeza.

         — Não, não há certeza nenhuma — disse Zúbarev e, apanhando um bocado de tijolo do chão, arremessou-o com força contra a parede.

Os companheiros olharam para ele, para a sua barba, e riram às gargalhadas.

(p. 250)

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

As falsificações de obras de arte são também obras de arte?

Está agora mais acessível o ensaio que escrevi para o livro de homenagem à professora Maria do Carmo d'Orey, publicado em 2023 pela BookBuilders. O livro foi organizado por Vitor Guerreiro (U. Porto), Carlos João Correia (U. Lisboa) e Vítor Moura (U. Minho) e o seu título é Quando Há Arte! O livro tem vários ensaios muito bons sobre os mais diversos aspectos da estética e filosofia da arte, que merecem a leitura de quem se interessa por esta disciplina filosófica.

O meu ensaio intitula-se «Arte e contrafacção: valor estético e estatuto das falsificações» e pode ser lido aqui.


segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Uma janela para o problema da demarcação

Eis um pequeno excerto do livro Novas Janelas Para a Filosofia, publicado no final do passado mês de Maio. O excerto é do início do capítulo sobre filosofia da ciência, mais precisamente sobre o problema da demarcação. 

   Distinguir a ciência do que não é ciência tem sido bastante mais difícil do que possa parecer. É um problema que muitos consideram da máxima importância. Karl Popper (1902-1994) classificou-o como o mais importante problema da filosofia da ciência, procurando apresentar uma solução para ele, como veremos. O problema tem, de resto, adquirido uma crescente importância prática, na medida em que se trata também de distinguir a ciência de um tipo particular de não-ciência: a pseudociência. A sua particularidade, como o prefixo pseudo indica, é a de reivindicar ilegitimamente para si o estatuto de ciência genuína. Claro que tal reivindicação seria inútil se não houvesse semelhança alguma entre a ciência e a pseudociência, o que é visto como uma ameaça à própria ciência, tal como a moeda falsa é uma séria ameaça à moeda verdadeira, minando a confiabilidade desta. Como se adivinha, isso acarreta vários outros perigos de cariz social e político.
   Por exemplo, há decisões políticas que precisam de ser baseadas em informação e fundamentadas em explicações científicas, em vez de meras especulações e aparências, pelo que é importante saber quem está em condições de o fazer: em que investigações se deve gastar o dinheiro de todos, o que ensinar nas escolas ou que medidas de saúde devem ser adoptadas numa pandemia? Ao distinguir as fontes de conhecimento mais fiáveis das suas imitações, a demarcação entre ciência e pseudociência permite orientar decisões, tanto na vida pública como na privada: devo consultar um médico ou é melhor ir antes ao homeopata?
   Não tem, no entanto, sido fácil encontrar um critério de demarcação satisfatório. E para isso contribui também o facto de o universo da ciência ser bastante heterogéneo, abrangendo as ciências naturais, as ciências sociais e humanas, as ciências formais, e ainda as novas ciências que vão surgindo, como as ciências computacionais, a sociobiologia, a cibernética, as ciências da Terra e do ambiente, as ciências do trabalho, da comunicação, da educação, etc. E há também quem considere a psicanálise e o marxismo científicos. Em contrapartida, há áreas que já foram amplamente consideradas científicas e que deixaram de o ser, como a astrologia (praticada por Ptolomeu e Kepler), a alquimia (praticada por Paracelso) e a frenologia (fundada pelo médico alemão Franz Joseph Gall). De resto, nenhuma lista de pseudociências é consensual. Exemplos como o criacionismo, o terraplanismo, a homeopatia ou a quirologia são relativamente pacíficos, mas há quem discuta seriamente se a parapsicologia ou a acupunctura merecem ser qualificadas de científicas.
   Se for possível apresentar um critério satisfatório de demarcação entre o que é e o que não é ciência, não só muitos dos perigos representados pelas pseudociências poderão ser mais facilmente enfrentados, como ficaremos com uma maior compreensão da natureza de uma das mais relevantes actividades humanas.
 (pp. 249-250)