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domingo, 22 de setembro de 2024

Tolstói sobre a essência da arte

 

Esgotada a anterior edição deste clássico da filosofia da arte, eis que surge agora uma reedição revista. Não só a capa é agora bastante mais sugestiva como a minha introdução à tradução portuguesa (directamente do russo) foi revista e afinada.  

Este ensaio, que o próprio Tolstói considerava um dos livros mais importantes que escreveu, merece até mais do que uma leitura. Aliás, uma característica notável dele é que, passados mais de cento e vinte anos da sua publicação, continua a não deixar o leitor indiferente nem perdeu a sua capacidade para continuar a causar perplexidade nos leitores actuais.

O livro estará nas livrarias já nesta semana. 

Eis um pequeno excerto da minha introdução.

          Publicado em 1898, depois de quinze anos a trabalhar nele, o ensaio O Que é a Arte? surge na parte final de um século marcado por grandes ideologias e ideais revolucionários, por vezes incompatíveis, tanto em termos sociais e políticos como artísticos e estéticos. Como qualquer outro aspecto da vida social, também o papel da arte e o lugar do artista na sociedade acabaram por ter de ser reequacionados. Por isso, os próprios artistas, mais do que os filósofos, sentiram necessidade de justificar a importância da sua actividade e o papel que lhes cabia desempenhar. Não é, pois, de estranhar que as principais teorias acerca do valor e da função da arte  questões claramente filosóficas — tenham como protagonistas mais destacados os artistas ou críticos de arte e não tanto os filósofos profissionais. Daí que algumas das mais influentes ideias estéticas do século XIX estejam normalmente associadas a movimentos artísticos e literários, como o romantismo, o realismo e o esteticismo.

            O romantismo — que começou na literatura, alargando-se depois à pintura, escultura e, por fim, à música — foi, sem dúvida, o mais influente, duradouro e abrangente movimento artístico do século XIX. São muitas as ideias defendidas pelos românticos, algumas das quais vêm de trás. Mas aquela que mais sobressai é a ideia de que a matéria-prima da criação artística é a emoção e o seu carácter estritamente subjectivo. A função do artista, de acordo com o romantismo, não é retratar a realidade objectiva exterior, mas antes penetrar nas profundezas do universo interior de sentimentos de que ele mesmo tem experiência. Descrever a natureza física exterior ou a realidade objectiva era o que a ciência estava já a fazer, aparentemente com enorme sucesso — um sucesso nunca visto até então. Contudo, esse sucesso deixava completamente inexplorado o mundo, não menos complexo, diversificado e importante, dos sentimentos. A compreensão desse mundo só poderia ser alcançada por intermédio da arte e só o artista estaria apto a encontrar a melhor forma de exprimir sentimentos. Sendo assim, torna-se bastante fácil justificar o papel do artista na sociedade e a importância ou o valor da arte: esta é, afinal, uma forma de obter conhecimento acerca daquilo que não está ao alcance da ciência.

            Associada à concepção da arte como expressão de sentimentos, foi-se desenvolvendo uma dada imagem do artista romântico: por um lado, passa a ser visto como uma figura atormentada, obrigada a experimentar, em nome da sinceridade que se lhe exige, os sentimentos que exprime, por mais contraditórios e dilacerantes que sejam; por outro lado, passa também a ser visto como um génio incompreendido, na medida em que exprime o que mais ninguém ousaria exprimir. Isto, por sua vez, acaba por colocar o artista, mais do que a própria obra, no centro das preocupações românticas. 

            Em sentido oposto, surge o realismo. Este movimento, que aparece em meados do século XIX, é uma reacção declarada a uma arte que, como queriam os românticos, fecha os olhos ao que está diante de si, ao que se passa na sociedade e ao mundo das pessoas comuns, incluindo os pobres e os explorados. Ao passo que os românticos se entregam a uma arte sem consciência social, os realistas batem-se por uma arte socialmente responsável. A imagem do artista ensimesmado, própria do romantismo, deveria, pois, dar lugar à do artista socialmente empenhado, senão mesmo do artista revolucionário.

            Como se verá, Tolstói é claramente influenciado por ambos os movimentos, mas está longe de se rever em qualquer deles. A sua teoria da arte como expressão de sentimentos aproxima-o do romantismo, mas em tudo o resto se demarca de forma muito vincada, nomeadamente ao defender que nem todos os tipos de sentimentos contam e, sobretudo, que a finalidade da expressão é moral (é o progresso moral da humanidade) e não epistémica (não é o conhecimento do que se passa no interior do sujeito). A própria ideia do artista romântico como génio incompreendido e ensimesmado o repugna mais do que qualquer outra, alegando que um artista assim não só não serve a arte como lhe é mesmo prejudicial, na medida em que é responsável por colocar simulacros de arte no lugar da arte autêntica. Algumas das páginas mais contundentes de O Que é a Arte? visam precisamente desmascarar de forma impiedosa o que considera ser a falsa arte de algumas das mais sonantes obras do romantismo: a Nona Sinfonia e a Sonata Opus 101, de Beethoven, bem como toda a tetralogia de O Anel, de Wagner.

            Por sua vez, ao defender uma concepção da arte completamente oposta ao tipo de preocupações próprias das classes ricas e de pessoas ociosas, Tolstói aproxima-se do realismo: a arte autêntica, considera ele, dá voz a sentimentos comuns, mas genuínos, das pessoas simples e trabalhadoras do povo. Os poucos exemplos, dados por Tolstói, de arte genuína ou de boas obras de arte da sua época são, na sua maioria, de obras associadas ao realismo: pinturas de Millet e Lhermitte, alguns romances de Dickens e de Dostoievski e Os Miseráveis, de Victor Hugo (refere também canções de embalar, danças e histórias populares, quase sempre de autoria anónima, mas amplamente difundidas entre o povo e as classes trabalhadoras). Mesmo assim, exceptuando aqueles dois pintores, nenhum dos outros são exemplos indisputáveis de realismo. Em contrapartida, refere de forma algo depreciativa autores claramente realistas, como Émile Zola, ignorando completamente Balzac, Stendhal ou Flaubert, e dando o benefício da dúvida a Maupassant. 

            Mas há um outro importante movimento estético do seu tempo com o qual Tolstói não tem mesmo qualquer afinidade, opondo-se-lhe totalmente: o movimento da arte pela arte, encabeçado por Théophile Gauthier, também conhecido como esteticismo. Este movimento baseia-se numa concepção não-funcionalista da arte, isto é, uma concepção da arte segundo a qual ela não serve qualquer outro propósito exterior a si mesma. É a arte que dá a si a sua finalidade, pelo que se justifica por si mesma. A ideia subjacente é que a arte tem valor intrínseco e que isso é, em termos sociais, justificação suficiente para merecer a mais elevada estima. 

            Tolstói considera isto uma completa perversão da arte e dá vários exemplos de arte simbolista que ilustram a vacuidade da teoria da arte pela arte. Obras de Jean Moréas, Baudelaire, Mallarmé, Verlaine e outros são apontadas como meras imitações de arte — nem sequer má arte são. E o mesmo em relação às pinturas simbolistas de Odilon Redon, Puvis de Chavannes e outros. A arte decadentista é outro dos alvos de Tolstói. Os decadentistas, como Oscar Wilde, acreditam que a arte nunca deve ser avaliada por critérios morais. O decadentismo — que, segundo Tolstói, também encontra apoio em algumas ideias de Nietzsche — acaba por ser como que um prolongamento do esteticismo: de acordo com os esteticistas, a arte tem valor autónomo; de acordo com os decadentistas, a arte não só tem valor autónomo como nem sequer pode haver obras de arte morais ou imorais. Para os decadentistas, a arte e a moral são independentes uma da outra. Nada poderia ser mais contrário ao que defende Tolstói, para quem a questão do valor da arte encontra resposta numa forma extrema de moralismo.

            Esta é, muito genericamente, a posição de Tolstói em relação às principais ideias estéticas surgidas no seu conturbado século. Havia ainda concepções estéticas vindas do século anterior e que continuavam a ter os seus adeptos. Entre essas concepções destacavam-se a estética kantiana do belo, entretanto reciclada por Schopenhauer, e a metafísica do belo hegeliana, a qual, nas palavras de Tolstói, o mesmo Schopenhauer mostrou não passar de puro misticismo. Como se verá adiante, Tolstói rejeitava também estas estéticas, as quais padeciam do vício fatal de se basearem nas noções de beleza e de prazer, que, para ele, iam dar ao mesmo. Por sua vez, obras que procuravam um certo equilíbrio formal — outra ideia de inspiração kantiana —, eram igualmente desclassificadas por Tolstói, acusando-as de serem demasiado racionais e por carecerem de algo que é uma condição necessária da arte: a capacidade de contagiar as pessoas com os sentimentos vividos pelo artista.

            Em suma, nem o romantismo, nem o realismo, nem o esteticismo, nem Kant, nem Hegel, nem Schopenhauer, nem Nietzsche conseguem oferecer qualquer resposta minimamente satisfatória para as questões da essência e do valor da arte, que Tolstói pensa estarem estreitamente ligadas. Essa foi, provavelmente, a motivação que o levou a escrever este ensaio, no qual fica bem patente a singularidade do seu pensamento estético num século em que não faltaram teorias estéticas.


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