Infelizmente, só depois de ter ocorrido me dei conta da apresentação do livro Filosofia Perene, de João Carlos Silva, feita pelo Desidério Murcho. Confesso que, exceptuando as ligações que coloco no Facebook para os posts deste meu blog, raramente lá volto. A não ser quando, como aconteceu agora, alguém me recomenda ir lá ver algo.
Foi assim que dei com a gravação da apresentação, que o João Carlos Silva disponibilizou no FB.
O Desidério fez uma breve apresentação de cada um dos ensaios do livro, detendo-se mais detalhadamente em dois deles: os ensaios sobre a ética da guerra e sobre o necessitarismo metafísico. Foi a propósito deste último, onde o João Carlos discute as implicações desta perspectiva para o debate sobre o livre-arbítrio, que o Desidério destacou uma ideia aí sugerida e que ele rejeita.
A ideia que o Desidério rejeita é a expressa pela seguinte condicional: se não tivéssemos livre-arbítrio, não seríamos moralmente responsáveis por nada do que fazemos. Esta é uma objecção habitual à tese de que o livre-arbítrio não passa de uma ilusão: como pode ser uma ilusão, uma vez que somos, sem dúvida, moralmente responsáveis? Isso seria absurdo, diz-se. Claro que temos livre-arbítrio, caso contrário o que seria da responsabilidade moral? Ora, o Desidério defende ser irrelevante termos ou não termos livre-arbítrio, pois mesmo que não tenhamos livre-arbítrio, na prática isso não acarreta qualquer mudança nas nossas vidas, que continuarão a ser exactamente como sempre foram. Num certo sentido, continuamos a ter de decidir se algumas pessoas devem ou não ser presas, se devem ou não ser censuradas, etc. Assim, se eventualmente se viesse a descobrir, sem margem para dúvidas, que não temos livre-arbítrio, continuaríamos a ter de tomar o mesmo tipo de decisões que sempre tivemos de tomar.
Em resposta, o João Carlos começa por aceitar o argumento do Desidério, acrescentando que pretendeu mostrar antes a incoerência filosófica (não prática) de defender simultaneamente uma perspectiva metafísica necessitarista (como o fatalismo), segundo a qual o livre-arbítrio é impossível, e a perspectiva de que somos moralmente responsáveis. Parece, afinal, que o João e o Desidério estão a defender coisas subtilmente diferentes acerca de questões também elas subtilmente diferentes.
Prolongando um pouco o debate em benefício de uma melhor compreensão do que está em causa, penso que seria útil tentar esclarecer melhor o que se entende por livre-arbítrio e também por responsabilidade moral, pois o argumento do Desidério apoia-se, em parte, na aparente vagueza de tais noções, como ele mesmo refere. Por sua vez, o argumento do João Carlos parece assumir que tanto a noção de livre-arbítrio como a de responsabilidade moral são razoavelmente transparentes.
De certo modo, têm ambos razão. Por um lado, há diferentes noções de livre-arbítrio e também de responsabilidade moral, o que torna ambos os conceitos algo escorregadios. Por exemplo, o conceito de livre-arbítrio tanto pode ser definido como a capacidade de fazer o que se deseja sem constrangimentos externos (Hobbes, Hume), como em termos de possibilidades alternativas (van Inwagen, Ginet), como em termos de autocontrolo (Frankfurt, Dennett), como em termos de agir em função de razões apropriadas (John Martin Fisher), entre outras maneiras. Mas, por outro lado, podemos ficar apenas com uma destas abordagens, caso em que ficamos com uma noção de livre-arbítrio razoavelmente clara.
Isso leva-me a pensar que iniciar a discussão com a condicional «se não tivermos livre-arbítrio, não somos moralmente responsáveis» é quase como arrancar o carro com o travão a fundo, pois temos de parar imediatamente para esclarecer o que é isso de ter livre-arbítrio. Se adoptarmos a noção de livre-arbítrio de van Inwagen, aquela condicional é verdadeira. Mas se adoptarmos a noção de livre-arbítrio de Frankfurt, aquela mesma condicional é falsa. Dito de outro modo, se adoptarmos uma perspetiva incompatibilista (a perspectiva de que não podemos ter livre-arbítrio, caso todos os acontecimentos sejam causados por acontecimentos anteriores), a condicional é verdadeira; mas se adoptarmos uma perspectiva compatibilista (a de que é possível termos livre-arbítrio, mesmo que todos os acontecimentos sejam causados por acontecimentos anteriores), então a condicional é falsa. Assim, talvez seja mais promissor começar antes pela questão do determinismo, que não levanta grandes dúvidas, permitindo tornar mais claras e debatíveis as perspetivas de cada um.
Sendo assim, concordo com o Desidério que muitos deterministas não vêem qualquer dificuldade em responder à objecção da responsabilidade moral. Como diz a cientista Sabine Hossenfelder: se descobríssemos agora que não temos realmente livre-arbítrio, então ficaríamos também a saber que nunca tivemos realmente livre-arbítrio. Qual a diferença, então? Afinal de contas, tudo funcionou como se tivéssemos livre-arbítrio, mesmo sendo ele uma ilusão. Por que razão haveria agora de ser diferente? Continuaríamos a tomar decisões, tal como o meu telemóvel decide, obedecendo a regras pré-estabelecidas, que mensagens são enviadas directamente para o lixo e quais me são dadas para ler.
Provavelmente, também o João Carlos tem razão quanto à incoerência do fatalista que reclama responsabilidade moral para as pessoas. Em todo o caso, o fatalismo é uma perspetiva tão misteriosa, que dificilmente não dispõe de uma justificação misteriosa para isso. Sartre não disse que somos fatalmente livres?
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