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segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Definições de arte não-essencialistas

Aqui fica um pequeno excerto (incluindo a imagem abaixo) do meu livro A Definição de Arte: O essencial, recentemente publicado na Plátano Editora. Trata-se de uma passagem em que procuro apresentar os traços gerais da abordagem não-essencialista e daquilo que distingue mais claramente as definições não-essencialistas das definições tradicionais (essencialistas).


A reação [ao ceticismo acerca da possibilidade de definir arte] traduziu-se, assim, na procura de uma definição não-essencialista, capaz de identificar as condições necessárias e suficientes da arte. 

Perante isto, poder-se-á perguntar: mas se as condições necessárias e suficientes não referem características essenciais da arte, hão-de referir o quê? Para melhor se compreender as definições não-essencialistas é útil começar por responder a esta pergunta, fazendo algumas comparações.

A primeira diz respeito à questão da função da arte. As definições essencialistas tendem a identificar a essência da arte com a função que a arte é suposto desempenhar, seja ela representar algo, exprimir emoções ou proporcionar satisfação estética. Assim, de acordo com a teoria representacional, a arte tem como função principal representar a realidade, fazendo-nos ver e compreender melhor aspetos do mundo que, sem ela, nos poderiam passar despercebidos; a teoria expressionista, por sua vez, assenta na ideia de que a função da arte é exprimir sentimentos que aproximem as pessoas entre si — na perspetiva de Tolstói — ou que contribuam para nos compreendermos melhor a nós próprios — na perspetiva de Collingwood —; de acordo com a teoria formalista, a arte tem como função criar padrões interessantes capazes de nos proporcionar satisfação estética. Portanto, o mérito artístico de obras de arte particulares depende substancialmente do modo como cada obra satisfaz os critérios funcionais da teoria considerada correta, os quais decorrem, por sua vez, do que se considera ser a essência da arte. Por exemplo, de acordo com a teoria da representação, as melhores obras são as que conseguem representar melhor ou mais fielmente aquilo que está a ser representado. E o mesmo tipo de critério funcional se aplica às restantes teorias tradicionais. Os não-essencialistas admitem, ao invés, que a arte possa ter as mais variadas funções — alargar o conhecimento, exprimir e explorar emoções, proporcionar experiências compensadoras, divertir, proporcionar prazer, ajudar-nos a ser pessoas melhores, comunicar ideias, criticar a sociedade, transformar o mundo, criar coisas belas, valorizar as nossas vidas, ajudar-nos a suportar os males do mundo, etc. — o que torna inútil procurar nos objetos de arte características permanentes supostamente associadas a funções tão diferentes. Até porque uma mesma obra de arte, consideram os não-essencialistas, pode servir diferentes funções, adquirir diferentes significados, admitir diferentes interpretações ou exprimir sentimentos diferentes, consoante o contexto em que ela é produzida ou apreciada.

Dado que os não-essencialistas não esperam que a definição sirva para determinar os méritos ou a qualidade de obras de arte particulares, o que eles procuram é uma definição que permita simplesmente classificar corretamente certos objetos como arte, sem qualquer preocupação de caráter valorativo. Buscam, portanto,  uma definição que seja compatível com a existência de boas e de más obras de arte.

Tudo isto sugere que as condições necessárias e suficientes da arte não dependem das características internas dos objetos. O não-essencialista considera, em contrapartida, que tais condições são relativas ao contexto em que eles estão inseridos e ao modo como tais objetos adquirem o estatuto de obras de arte. Uma metáfora adequada da perspetiva do não-essencialista é a afirmação atribuída ao escritor Jorge Luís Borges sobre a arte de que "nenhuma obra é uma ilha", no sentido em que é preciso procurar fora da obra — mais precisamente no contexto em que ela se encontra —, aquilo que a torna arte. Assim, a pergunta relevante para o não-essencialista não é "Quais são as características de um dado objeto que fazem esse objeto ser uma obra de arte?" mas antes "Como é que um qualquer objeto adquire o estatuto de obra de arte?" A primeira pergunta aponta para as próprias obras de arte ao passo que a segunda aponta para o seu contexto social. Por isso, os próprios defensores do não-essencialismo consideram ajustado o termo "contextualismo" para classificar o tipo de teorias da definição que eles propõem.

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Definir arte

O meu pequeno livro sobre a questão filosófica da definição de arte está já à venda e pode ser encomendado aqui. Deixo também um pequeno excerto do prefácio, com a descrição sumária de cada capítulo do livro.


Dada a importância das artes para os seres humanos e dada a sua enorme relevância social, haverá muitas outras pessoas interessadas nas questões da identificação e da natureza da arte, sejam estudantes de vários níveis e áreas, como professores, agentes artísticos ou apreciadores de arte em geral. Este livro também é para essas pessoas, pelo que a linguagem adotada procurou ser acessível, mas não estritamente escolar, de modo a chegar a todos.
Ainda que os artistas não precisem de quaisquer teorias da arte para produzirem obras de arte, todos temos algum tipo de necessidade de compreender o que é isso da arte e como distinguir o que é arte do que não é. Assim, talvez o conhecido artista americano Barnett Newman tenha dito apenas uma parte da verdade quando afirmou que “a estética [ou teoria da arte] está para o artista como a ornitologia está para os pássaros”. Mesmo que os artistas dispensem as teorias, isso não significa que nós não precisemos delas para compreender o que os artistas criam, tal como estudamos ornitologia para conhecer melhor os pássaros, apesar de os próprios pássaros nada aprenderem com isso. 
Este livro está dividido em cinco partes. A primeira trata de esclarecer o problema da definição de arte: Em que consiste o problema? O que torna o problema difícil? Para quê definir arte? Que tipo de definição se pretende? Esta última secção da primeira parte visa apenas dar as ferramentas técnicas para a discussão subsequente. É talvez mais técnica, mas  é também das mais curtas. Em todo o caso, pretende-se que seja relativamente acessível.
Na segunda parte apresentam-se e discutem-se as três principais teorias essencialistas (da representação, da expressão e da forma significante), isto é, as que partem da ideia de que há uma essência da arte e, por isso, visam apresentar uma definição que descreva essa essência. 
Essas definições foram o alvo de uma forte reação cética. Os céticos não só consideram não haver uma essência da arte como afirmam tratar-se de um conceito indefinível. Pensam, contudo, que isso não é dramático, alegando que também não precisamos de uma definição de arte para nada. Este é o tema da terceira parte.
Por sua vez, os céticos foram alvo das críticas dos contextualistas, que insistem que o conceito de arte pode ser definido, embora em termos não-essencialistas. As definições não-essencialistas (institucional e histórica) são discutidas na parte quatro.
Por fim, na quinta parte, aperesentam-se brevemente algumas alternativas à definição, de modo a não se ficar com a ideia que nada mais há além das definições propostas. 

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Espinosa e o provincianismo invertido

Deparei-me há dias numa livraria com um novo livro sobre Espinosa. O título é O Milagre Espinosa (Quetzal) e o autor é o sociólogo e também filósofo francês Fréderic Lenoir, que eu desconhecia completamente.

Interessou-me. Mas antes de me decidir, fiz a habitual inspecção para ver se valeria a pena comprá-lo. Diz-se na capa que é um enorme best-seller em França, o que, no meu caso, gera expectativas contraditórias. Talvez o subtítulo, que também considero algo suspeito, Uma Filosofia Para Iluminar a Nossa Vida explicasse parte do sucesso. Mas não sou dos que pensam que os bons livros de filosofia não são para os leitores comuns nem que é impossível retirar deles lições para a vida, pelo que vale a pena inspeccionar melhor. 


Assim, além do inevitável índice geral, pareceu-me muito importante ver que bibliografia o autor consultou para escrever o livro, até porque o próprio diz no prólogo ter descoberto o pensamento de Espinosa há muito pouco tempo. Isso parece-me importante sobretudo porque se trata da biografia filosófica de um autor cujas ideias e cuja vida nem sempre têm sido fáceis de acompanhar. 

Como escreve Don Garrtett logo no início do imprescindível The Cambridge Companion to Spinoza, que ele mesmo coordena, Espinosa parece ter sido, em vários aspetos, uma figura contraditória na história da filosofia: conhecido como ateu, mas também descrito por Novalis como "um homem intoxicado por Deus"; um determinista radical cuja ética tinha como ideal tornarmo-nos pessoas livres; um defensor da identidade entre corpo e mente, mas que admite podermos alcançar um estado que transcende a morte corporal; aquele que uns vêem como precursor do materialismo dialéctico e outros como precursor do idealismo absoluto; que defende o egoísmo psicológico, mas que procura promover uma comunidade humana baseada no amor e na amizade; o defensor da autoridade do estado que, ao mesmo tempo, defende a democracia e a liberdade de expressão. Não é, pois, fácil descrever o pensamento de Espinosa sem um conhecimento profundo da sua obra, nem é avisado retirar ilações da sua vida sem ter em conta o que os melhores investigadores nos têm revelado. Surpreendentemente, nenhum desses autores de referência aparecem na bibliografia consultada pelo autor: nem o compêndio de Garrett, nem o reconhecido especialista W. N. A. Klever, nem sequer a justamente premiada e aclamada biografia de Espinosa, escrita pelo filósofo Steven Nadler, que é considerada a primeira biografia completa e detalhada do filósofo de origem portuguesa. 

Quero deixar claro que isto, só por si, não permite concluir que se trata de um mau livro, embora a probabilidade de o ser aumente significativamente. Tudo indica que se trata de um livro destinado ao grande público, visando apenas proporcionar um primeiro contacto com a vida e a obra do filósofo. Nesse caso, não será assim tão grave o autor não se ter baseado em alguma da bibliografia mais relevante. Teria sido melhor, mas compreende-se, dado o tipo de livro. Todavia, foi suficiente para concluir que não era o tipo de livro que interessa muito a quem procura ter uma compreensão mais robusta da filosofia de Espinosa e um conhecimento mais rigoroso da sua vida. Para isso há o livro de Nadler, infinitamente melhor, publicado pela Europa-América. 

Mas há outro aspecto acerca da tradução deste livro que me deixou realmente decepcionado. Veja-se como a tradutora justifica a opção pela grafia do nome do filósofo:


A justificação consiste simplesmente em remeter para o que Diogo Pires Aurélio escreveu a propósito da sua tradução do Tratado Teológico-Político de Espinosa. Contudo, o que Pires Aurélio escreve não chega sequer a ser uma justificação e mais depressa justificaria a escolha do nome português Bento em vez do hebraico Baruch. Ele diz que, por sua vez, se limita a seguir Joaquim de Carvalho. Todavia, acrescenta que o próprio Joaquim de Carvalho, numa edição posterior, acabou por optar por Bento em vez de Baruch. Compreende-se o argumento? Eu não.

Se o tradutor abandonou Baruch a favor de Bento numa edição posterior é porque alguma informação ou pesquisa adicional o levou a fazer essa correcção. Qualquer pessoa concluiria que, vindo da parte de um estudioso e tradutor do filósofo, a segunda e definitiva opinião estaria mais bem fundamentada do que a primeira. Mas Pires Aurélio conclui, sem mais, precisamente o oposto. Para isso, mais valia não citar sequer Joaquim de Carvalho, dado que este acaba por lhe retirar o apoio que procura. 

Pires Aurélio não evita acrescentar que Joaquim de Carvalho simplesmente cedeu "à tentação de aportuguesar [o nome do filósofo], escrevendo Bento de Espinosa". E por que não apontar também a cedência à tentação, a que o próprio Pires Aurélio não resistiu, de escrever Espinosa em vez de Spinoza? É isso coerente? Penso que não.

De resto, é deveras surpreendente que, como tradutor de Espinosa, Pires Aurélio não tenha em conta factos acerca de Espinosa há muito revelados. Talvez tenha sido precisamente o conhecimento desses factos que levou Joaquim de Carvalho a substituir Baruch por Bento. Eis alguns desses factos incontroversos:

- Em praticamente todos os documentos e registos originais encontrados, o nome do filósofo é "Bento", em português. Era chamado pela família por esse nome e conhecido por esse mesmo nome na própria comunidade judaica de Amsterdão. Há duas excepções em documentos posteriores, uma das quais é o documento do herem, que decreta a expulsão de Baruch da comunidade judaica.

- Bento e seu irmão Grabriel abriram, em Amsterdão, uma empresa comercial após a morte do pai. O nome da firma era precisamente "Bento y Gabriel Despinoza".

-  Baruch significa em hebraico o mesmo que Benedictus em latim e Bento em português, ou seja: abençoado. Baruch era sobretudo usado no contexto das actividades religiosas judaicas, Benedictus era a tradução para a língua culta em que geralmente se publicava na altura. O próprio Descartes tem obras publicadas na altura com os nomes Renatus e Renati; e também Des Cartes e Cartesius. 

- Após a sua expulsão da comunidade judaica, o jovem filósofo anunciou não querer ser chamado pelo nome hebraico Baruch. Na altura ainda não tinha obra relevante publicada.

- As obras de Espinosa foram quase todas publicadas pela primeira vez logo após a sua morte. O nome do autor surge apenas como "B. d. S.", sendo provavelmente a abreviatura de "Benedictus de Spinoza", pois era o latim que se costumava usar. Parece ter sido por indicação do próprio. O nome hebraico Baruch não costuma ser seguido por um "de".

Garanto que não inventei nada disto e que nem sequer foi preciso pesquisar muito. Está tudo disponível, mesmo em português. Mas o que resulta daqui? Que os primeiros a aportuguesar o nome do filósofo foram os seus próprios pais, tanto que foi esse o nome que lhe deram e pelo qual o chamavam (os pais de Espinosa tinham, de resto, dificuldade em falar bem outras línguas que não o português). 

E se há opção completamente injustificada é precisamente Baruch, pois o próprio filósofo deixou claro que nunca mais queria ser identificado com esse nome. Quem achar provinciano usar o nome português Bento, que opte então por Benedictus e nunca por Baruch. Mas, já agora, por que não usar, no caso de Descartes, também o seu nome latino?

Em suma, traduzir não é uma tarefa fácil e ninguém está livre de fazer más opções. Mas este parece-me um caso sui generis, pois fica-se com a ideia de que se trata de uma espécie de provincianismo invertido. Será que isto faz sentido?

terça-feira, 9 de julho de 2019

Ensinar filosofia

Este será o próximo livro da colecção Filosofia Aberta, a publicar em Agosto.


Alguns estudantes acham a filosofia cativante; outros simplesmente ficam indiferentes ou mesmo desnorteados. Como fazer para que todos consigam compreender os problemas filosóficos, envolver-se na sua discussão e apreciar a filosofia, independentemente das suas motivações ou capacidades iniciais?

Neste livro, o filósofo e professor Steven M. Cahn procura dar resposta a essa difícil pergunta, baseando-se na sua longa experiência de ensino da filosofia, tanto a alunos de iniciação como a alunos de pós-graduação. Cahn apresenta aqui algumas ideias e sugestões concretas que usou em cursos de preparação de professores de filosofia ministrados por si. O sucesso desses cursos foi publicamente reconhecido pelos directores das escolas e departamentos onde esses professores vieram a exercer, relatando um aumento excepcional no interesse dos alunos.

Cahn não se fica por generalidades sobre o ensino da filosofia e mete sem rodeios a mão na massa, dando exemplos claros de boas e de más práticas, de boas e más estratégias, de boas e de más escolhas, ao mesmo tempo que procura mostrar como fazer para que os alunos consigam ser bem-sucedidos. E não deixa nenhum aspecto importante de lado: desde as obrigações dos professores, às questões didácticas, às avaliações e exames, à linguagem usada, sem deixar de desfazer alguns equívocos pedagógicos e mitos educativos. Além disso, uma parte importante do livro contém propostas concretas de carácter introdutório para várias áreas e temas centrais da filosofia, como a argumentação, o problema do livre-arbítrio, a filosofia da religião, a ética e a filosofia política.

A escrita de Cahn é lúcida e acessível, usando exemplos reais e evitando o jargão educacional. Em suma, este livro não é apenas um guia sobre como inspirar os alunos, mas também uma inspiração para os próprios professores. Além de ser muito útil para professores de diferentes níveis de ensino da filosofia, é-o também para os próprios alunos e até para quem se interessa pelas questões do ensino em geral.

terça-feira, 14 de maio de 2019

Um céptico racional num mundo irracional: em livro e ao vivo

Depois da publicação do mais recente livro de Julian Baggini — o primeiro do filósofo britânico com tradução portuguesa — está também confirmada a sua presença no próximo Encontro Nacional de Professores de Filosofia, em Santarém, no início de Setembro. 

Depois de o ler, vai ser bom poder ouvi-lo e conversar com ele também. Para se ter uma ideia do tom geral do livro de Baggini As Fronteiras da Razão: Um céptico racional num mundo irracional, recentemente publicado na colecção Filosofia Aberta, deixo abaixo uma pequena passagem do início do primeiro capítulo, que é tão surpreendentemente óbvia quanto desconfortavelmente provocadora.  

As grandes questões acerca de Deus e da religião estão entre as mais significativas e importantes que cada um de nós tem de enfrentar. Deus existe? É a ciência compatível com a religião? Pode haver moralidade sem Deus? Embora tenha dado considerável atenção a cada uma destas questões, quando sou convidado para debater alguma delas em público, tenho-me inclinado cada vez menos a aceitar fazê-lo. Tendo visto o que estes eventos envolvem, a tarefa como um todo cada vez mais parece uma charada. Um dos lados apresenta os seus argumentos, seguido pelo outro. As razões são empilhadas para apoiar ambos os casos. Mas no fim, quase toda a gente acredita exactamente naquilo em que acreditava no início. Apenas alguns membros da audiência que estejam genuinamente inseguros ou confusos podem ser influenciados por um lado ou pelo outro. Estes debates são montados como batalhas do intelecto, tribunais filosóficos onde os argumentos são apresentados e avaliados. São, na realidade, como competições desportivas onde toda a gente vem para apoiar a sua própria equipa e se vai embora convencida de que a sua foi a melhor, seja qual for o resultado. Parece-me que o único efeito construtivo destes eventos é fazer a audiência recordar que a discordância cortês é possível e que aqueles aos quais se opõem também podem ser boas pessoas e inteligentes.
            Este sentido de futilidade não se restringe aos debates de suma importância. É ainda mais evocada pelo mundo académico da filosofia da religião. Aí encontramos pessoas muito inteligentes, todas comprometidas em serem tão racionais quanto possível acerca de suas crenças. Escrevem livros e artigos de revistas repletos de argumentos complexos, subtis e arcanos. Claramente, são pessoas que levam a razão muito a sério, de facto. Com que frequência, no entanto, vemos qualquer uma delas mudar de ideias acerca de qualquer uma das grandes questões? Muito raramente. O diálogo académico entre teísmo e ateísmo é virtualmente inexistente. Nas raras ocasiões em que alguém muda de filiação, trata-se de uma grande novidade; a tal ponto que mesmo uma vaga hesitação é vista com trepidação. Quando o famoso ateísta Antony Flew, por exemplo, apareceu já numa idade bastante avançada a endossar um tipo de deísmo, manchetes como «Ateísta famoso agora acredita em Deus» apareceram no mundo inteiro.
            Se esses filósofos da religião estivessem simplesmente a seguir os argumentos até onde quer que conduzissem, poder-se-ia esperar significativamente mais movimento, consoante fossem levados primeiro numa direção, depois na outra. A verdade, contudo, é que estes argumentos parecem levar apenas ao próximo contra-argumento. Quando, por exemplo, um ateísta se depara com uma versão nova e brilhante de um argumento a favor da existência de Deus que não consegue refutar, não diz «Ah! Portanto, agora tenho de acreditar em Deus!». Ao invés, diz: «É brilhante. Tem de haver algo errado com este argumento. Dê-me algum tempo e descobrirei o que é.» De igual modo, um teísta não perderá a sua crença apenas porque não consegue refutar um argumento a favor do ateísmo. Ao invés, esse argumento torna-se-á simplesmente um desafio a ser vencido no momento oportuno.
            Tudo isto pode parecer escandaloso. A moeda da filosofia da religião é supostamente a discussão racional, mas esta moeda não pode comprar a posição oposta a qualquer preço. Contudo, desesperar-se com isto seria equivalente a compreender mal a natureza da discussão racional e a sua importância para os grandes compromissos da vida como o de acreditar em Deus ou não. A razão tem de facto um papel importante a desempenhar aqui, mas não é o de juíza objectiva e independente. O juiz último não é a razão, mas sim o ser que raciocina, para quem a racionalidade é um instrumento, e não um tipo de autoridade.    

sábado, 16 de março de 2019

Filosofar sobre música

Raramente tenho visto compositores, e músicos em geral, a dizer algo realmente interessante sobre questões de filosofia da música. Isso é perfeitamente natural, pois o que se espera de músicos e compositores é que toquem bem e componham boa música, não que sejam capazes de filosofar sobre o assunto. Por isso, foi uma boa surpresa ver a excelente entrevista que Ricardo Lopes, autor do não menos surpreendente canal The Dissenter, fez ao compositor Samuel Andreyev, e em que este avança com várias respostas filosoficamente bem interessantes, dignas de um bom filósofo da música.

O tema geral da entrevista é o da avaliação musical, mas acabam também por ser abordadas as questões da definição da música, da representação musical e, ainda que de forma implícita, da ontologia da música (a este respeito Andreyev parece ser um anti-platonista).

Como disse, as respostas são quase sempre interessantes, mesmo quando não me parecem inteiramente correctas. Por exemplo, quando Ricardo Lopes diz que a música não pode ser simplesmente um conjunto de sons (intencionalmente) organizados uma vez que o discurso oral (speech) não é música, apesar de ser também um conjunto de sons organizados, Andreyev responde que a música e o discurso oral são muito mais próximos do que pode parecer, acabando por afirmar que a única diferença relevante entre a música e discurso oral é que no discurso, ao contrário da música, não há tom (pitch). E isto sugere a ideia, muito comum, mas que me parece errada, de que a música é, como o discurso oral, uma espécie de linguagem. Se pensarmos numa linguagem articulada, em sentido robusto, então parece-me claro que a música não é uma linguagem, pois apesar de ter uma sintaxe (um conjunto de regras a que obedece) carece de uma semântica. Sem dúvida que se pode defender que a música tem a capacidade de representação, mas aquilo que eventualmente representa é de tal forma impreciso e instável, que não seria correto falarmos de uma semântica.


Esta entrevista de Ricardo Lopes levou-me a ver outras (há uma anterior, igualmente interessante, com Andreyev) do canal The Dissenter, nomeadamente com Colin McGinn, Patricia Churchland, Simon Blackburn, Michael Ruse, David Benatar, Alex Rosenberg, Frans de Waal, e muitos outros de diferentes áreas de investigação. É um serviço notável de Ricardo Lopes e um canal que merece muito ser apoiado (por exemplo, para acrescentar legendas em português para os ouvintes que não compreendem o inglês).

Entretanto, embalado pelas entrevistas a Andreyev, decidi visitar o canal deste compositor, também ele excelente. A propósito da questão da avaliação da música, partilho aqui o vídeo abaixo em que faz uma avaliação do album Swordfishtrombones, de Tom Waits. Um magnífico exemplo.


sábado, 5 de janeiro de 2019

Dar palco para a defesa de opiniões abjectas e liberdade de expressão

A propósito das discussão que nos últimos dias tem empolgado muitas pessoas, ocorreu-me esta passagem de um livro de Nigel Warburton, que merece bem a pena ser lido.


Poderá parecer que das perspectivas de Mill acerca da livre expressão e do valor das falsidades sinceramente expressas se segue que deveríamos procurar activamente proporcionar um palco àqueles de quem discordamos for­temente. Trata‑se de uma forma pública de submeter as nossas perspectivas ao teste mais exigente: a confrontação com o erro sinceramente defendido. Inspirando‑se ou não em Mill, houve quem argumentasse neste sentido. Por exemplo, num debate em 2007 sobre o tópico da liberdade de expressão na Oxford Union Society, o seu presidente, Luke Tryl, justificou os seus convites a Nick Griffin (do Partido Nacional Britânico) e a David Irving afirmando que para um debate apropriado era importante escutar todas as perspectivas, ainda que fossem abjectas.  
Muitas pessoas crêem haver fortes argumentos a favor de não dar palco a esses oradores. Poderá tratar‑se lite­ralmente de um palco, como sucedeu no convite para a Oxford Union Society, ou poderá ser um palco metafórico, como ser‑lhes concedido espaço num jornal reputado ou serem entrevistados a propósito das suas perspectivas para um programa de rádio ou televisão. Os que adoptam a posição contrária a «dar palco» (e.g. sob a forma de «não dar palco a racistas» ou «não dar palco a negadores do Holocausto») argumentam que é moralmente errado dar credibilidade a tais pessoas, permitindo‑lhes acesso a esses canais de comunicação, canais que não raro trazem implí­cita uma marca de respeitabilidade. Por exemplo, convidar Irving para falar na Union Society poderia ser visto como um reconhecimento das suas credenciais como historiador académico, podendo desse modo fazer que fosse levado mais a sério do que deveria ser. 
Por outro lado, quem convidou Irving frisou que a Ox­ford Union tem uma longa história de convidar oradores controversos, inclusive, no passado, Malcolm X, e que um convite para esse palco em particular não acarretava de todo qualquer aceitação das perspectivas do orador. Os oradores são muitas vezes seleccionados com base na noto­riedade, em vez de na probabilidade de uma contribuição intelectual para um debate importante.  
Analogamente, numa conferência de zoologia, o comité organizador poderá muito bem decidir que seria inapropria­do um Criacionista da Terra Jovem, alguém que considera a Bíblia como uma explicação literal da origem da vida, partilhar um palco com cientistas reputados, porque isso parece sugerir que as perspectivas dos Criacionistas da Terra Jovem são cientificamente respeitáveis, o que claramente não sucede. Richard Dawkins cita um comentário cínico de um colega cientista, acerca deste tópico. Sempre que um criacionista o convida para um debate formal acerca dos indícios a favor da evolução, este cientista replica: «Isso ficaria muito bem no seu CV, mas não tão bem no meu.»  
Uma variante da perspectiva contra «dar palco» foi usada por Deborah Lipstadt, que, apesar de ser uma en­tre pouquíssimas pessoas adequadamente preparada para refutar passo a passo e em grande detalhe as perspectivas de Irving sobre o Holocausto, recusou aparecer em debate com Irving, com base em que aparecer sequer em público com ele lhe daria uma credibilidade que não merecia. Neste caso, a presença de Lipstadt como académica íntegra ao lado de Irving equivaleria a um reconhecimento indirecto da sua respeitabilidade como historiador. A ideia é que, tendo‑se mostrado que Irving é sistematicamente enganador acerca de algumas das suas fontes primárias, ele se desacreditou inteiramente a si próprio. Um terçar de armas com alguém credível poderia ser lido como parte da sua reabilitação enquanto investigador.  
É importante distinguir entre os argumentos contra dar palco e outros fenómenos relacionados. Primeiro, os argumentos contra dar palco não constituem uma censura total. Posso acreditar no direito jurídico que o leitor tem de dar voz às suas perspectivas sem com isso ter qualquer obrigação de lhe dar os meios para o fazer. Em particular na era da Internet, a maioria de nós pode encontrar meios de exprimir as suas perspectivas a um público vasto. A completa censura é uma tentativa de impedir toda a ex­pressão de perspectivas particulares. Os argumentos contra dar palco são acerca de se evitar sancionar indirectamente um orador, dando‑lhe um pódio a partir do qual possa comunicar as suas perspectivas.  
Deve‑se também distinguir entre os argumentos contra dar palco e a perspectiva de que só os tolerantes são dignos de serem tolerados, que não temos a obrigação de preservar a liberdade de expressão daqueles que restringiriam o dis­curso de outros. Este género de raciocínio, por tentador que seja, não merece a designação de «livre expressão». Pode levar a um tipo de censura. Sem dúvida, os argumentos de Mill a favor da livre expressão não discriminarão os intolerantes como indignos de serem escutados. As pes­soas intolerantes podem muito bem dar voz à verdade em muitos assuntos, ou as suas perspectivas poderão conter elementos de verdade. Os argumentos contra dar palco são argumentos acerca do que fazemos indirectamente ao dar palco a determinadas pessoas, e não uma recusa absoluta de dar palco seja em que situação for, como punição pela intolerância do orador.  
Os veredictos de Mill sobre a livre expressão pode­rão, aparentemente, justificar que se convide extremistas a participarem nos debates públicos, apesar de as suas perspectivas nos parecerem repugnantes. No entanto, como consequencialista, Mill teria sido também sensível aos efeitos secundários desses convites, que, em alguns casos, podem ter bastantes ramificações. Também esboçaria muito claramente um limite para lá do qual a expressão dos oradores se tornaria incitamento à violência.  
Porém, quando uma pessoa é repetidamente impedida de usar a imprensa e a televisão para apresentar uma mensagem a uma audiência mais vasta, isto pode come­çar a assemelhar‑se a censura informal. Se a consequência fosse as ideias dessa pessoa não chegarem a ser expressas abertamente e não são sujeitas ao escrutínio crítico, seria um resultado infeliz.
                                                                                                   (pp. 48-51)