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terça-feira, 14 de maio de 2019

Um céptico racional num mundo irracional: em livro e ao vivo

Depois da publicação do mais recente livro de Julian Baggini — o primeiro do filósofo britânico com tradução portuguesa — está também confirmada a sua presença no próximo Encontro Nacional de Professores de Filosofia, em Santarém, no início de Setembro. 

Depois de o ler, vai ser bom poder ouvi-lo e conversar com ele também. Para se ter uma ideia do tom geral do livro de Baggini As Fronteiras da Razão: Um céptico racional num mundo irracional, recentemente publicado na colecção Filosofia Aberta, deixo abaixo uma pequena passagem do início do primeiro capítulo, que é tão surpreendentemente óbvia quanto desconfortavelmente provocadora.  

As grandes questões acerca de Deus e da religião estão entre as mais significativas e importantes que cada um de nós tem de enfrentar. Deus existe? É a ciência compatível com a religião? Pode haver moralidade sem Deus? Embora tenha dado considerável atenção a cada uma destas questões, quando sou convidado para debater alguma delas em público, tenho-me inclinado cada vez menos a aceitar fazê-lo. Tendo visto o que estes eventos envolvem, a tarefa como um todo cada vez mais parece uma charada. Um dos lados apresenta os seus argumentos, seguido pelo outro. As razões são empilhadas para apoiar ambos os casos. Mas no fim, quase toda a gente acredita exactamente naquilo em que acreditava no início. Apenas alguns membros da audiência que estejam genuinamente inseguros ou confusos podem ser influenciados por um lado ou pelo outro. Estes debates são montados como batalhas do intelecto, tribunais filosóficos onde os argumentos são apresentados e avaliados. São, na realidade, como competições desportivas onde toda a gente vem para apoiar a sua própria equipa e se vai embora convencida de que a sua foi a melhor, seja qual for o resultado. Parece-me que o único efeito construtivo destes eventos é fazer a audiência recordar que a discordância cortês é possível e que aqueles aos quais se opõem também podem ser boas pessoas e inteligentes.
            Este sentido de futilidade não se restringe aos debates de suma importância. É ainda mais evocada pelo mundo académico da filosofia da religião. Aí encontramos pessoas muito inteligentes, todas comprometidas em serem tão racionais quanto possível acerca de suas crenças. Escrevem livros e artigos de revistas repletos de argumentos complexos, subtis e arcanos. Claramente, são pessoas que levam a razão muito a sério, de facto. Com que frequência, no entanto, vemos qualquer uma delas mudar de ideias acerca de qualquer uma das grandes questões? Muito raramente. O diálogo académico entre teísmo e ateísmo é virtualmente inexistente. Nas raras ocasiões em que alguém muda de filiação, trata-se de uma grande novidade; a tal ponto que mesmo uma vaga hesitação é vista com trepidação. Quando o famoso ateísta Antony Flew, por exemplo, apareceu já numa idade bastante avançada a endossar um tipo de deísmo, manchetes como «Ateísta famoso agora acredita em Deus» apareceram no mundo inteiro.
            Se esses filósofos da religião estivessem simplesmente a seguir os argumentos até onde quer que conduzissem, poder-se-ia esperar significativamente mais movimento, consoante fossem levados primeiro numa direção, depois na outra. A verdade, contudo, é que estes argumentos parecem levar apenas ao próximo contra-argumento. Quando, por exemplo, um ateísta se depara com uma versão nova e brilhante de um argumento a favor da existência de Deus que não consegue refutar, não diz «Ah! Portanto, agora tenho de acreditar em Deus!». Ao invés, diz: «É brilhante. Tem de haver algo errado com este argumento. Dê-me algum tempo e descobrirei o que é.» De igual modo, um teísta não perderá a sua crença apenas porque não consegue refutar um argumento a favor do ateísmo. Ao invés, esse argumento torna-se-á simplesmente um desafio a ser vencido no momento oportuno.
            Tudo isto pode parecer escandaloso. A moeda da filosofia da religião é supostamente a discussão racional, mas esta moeda não pode comprar a posição oposta a qualquer preço. Contudo, desesperar-se com isto seria equivalente a compreender mal a natureza da discussão racional e a sua importância para os grandes compromissos da vida como o de acreditar em Deus ou não. A razão tem de facto um papel importante a desempenhar aqui, mas não é o de juíza objectiva e independente. O juiz último não é a razão, mas sim o ser que raciocina, para quem a racionalidade é um instrumento, e não um tipo de autoridade.    

1 comentário:

  1. Recordo-me de um debate organizado na escola Manuel Teixeira Gomes sobre o tema da religião onde ouvi pela primeira a analogia do relojoeiro, e a falácia que esta representa. Lembro-me que as aulas tinham terminado, e estávamos nos últimos dias de escola antes das férias do verão, tendo sido umas das últimas vezes que debati filosofia com o professor Aires.
    Durante essas férias li o “Pense” de Simon Blackburn, tal como me tinha aconselhado. Logo nas primeiras páginas o autor respondia à questão “Qual o objetivo da filosofia?” de uma forma tão harmoniosa, e que me fez tanto sentido que ainda hoje me lembro. Colocava a resposta sobre três pontos de vista, consistindo um deles no prazer da filosofia, tal como o prazer de ouvir uma boa música ou um bom filme.
    Que curioso é que hoje, passados mais de 15 desde esse dia, decido finalmente ler o seu blog e o primeiro tema que leio envolve esses dois conceitos. Por mais cíclico que seja o aparecimento de novos argumentos, e a sua consequente refutação, o prazer de pensar sobre este problema, ou outro igualmente complexo, faz da filosofia algo que vale a pena ser pensado, debatido, apresentado e partilhado.

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