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segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Espinosa e o provincianismo invertido

Deparei-me há dias numa livraria com um novo livro sobre Espinosa. O título é O Milagre Espinosa (Quetzal) e o autor é o sociólogo e também filósofo francês Fréderic Lenoir, que eu desconhecia completamente.

Interessou-me. Mas antes de me decidir, fiz a habitual inspecção para ver se valeria a pena comprá-lo. Diz-se na capa que é um enorme best-seller em França, o que, no meu caso, gera expectativas contraditórias. Talvez o subtítulo, que também considero algo suspeito, Uma Filosofia Para Iluminar a Nossa Vida explicasse parte do sucesso. Mas não sou dos que pensam que os bons livros de filosofia não são para os leitores comuns nem que é impossível retirar deles lições para a vida, pelo que vale a pena inspeccionar melhor. 


Assim, além do inevitável índice geral, pareceu-me muito importante ver que bibliografia o autor consultou para escrever o livro, até porque o próprio diz no prólogo ter descoberto o pensamento de Espinosa há muito pouco tempo. Isso parece-me importante sobretudo porque se trata da biografia filosófica de um autor cujas ideias e cuja vida nem sempre têm sido fáceis de acompanhar. 

Como escreve Don Garrtett logo no início do imprescindível The Cambridge Companion to Spinoza, que ele mesmo coordena, Espinosa parece ter sido, em vários aspetos, uma figura contraditória na história da filosofia: conhecido como ateu, mas também descrito por Novalis como "um homem intoxicado por Deus"; um determinista radical cuja ética tinha como ideal tornarmo-nos pessoas livres; um defensor da identidade entre corpo e mente, mas que admite podermos alcançar um estado que transcende a morte corporal; aquele que uns vêem como precursor do materialismo dialéctico e outros como precursor do idealismo absoluto; que defende o egoísmo psicológico, mas que procura promover uma comunidade humana baseada no amor e na amizade; o defensor da autoridade do estado que, ao mesmo tempo, defende a democracia e a liberdade de expressão. Não é, pois, fácil descrever o pensamento de Espinosa sem um conhecimento profundo da sua obra, nem é avisado retirar ilações da sua vida sem ter em conta o que os melhores investigadores nos têm revelado. Surpreendentemente, nenhum desses autores de referência aparecem na bibliografia consultada pelo autor: nem o compêndio de Garrett, nem o reconhecido especialista W. N. A. Klever, nem sequer a justamente premiada e aclamada biografia de Espinosa, escrita pelo filósofo Steven Nadler, que é considerada a primeira biografia completa e detalhada do filósofo de origem portuguesa. 

Quero deixar claro que isto, só por si, não permite concluir que se trata de um mau livro, embora a probabilidade de o ser aumente significativamente. Tudo indica que se trata de um livro destinado ao grande público, visando apenas proporcionar um primeiro contacto com a vida e a obra do filósofo. Nesse caso, não será assim tão grave o autor não se ter baseado em alguma da bibliografia mais relevante. Teria sido melhor, mas compreende-se, dado o tipo de livro. Todavia, foi suficiente para concluir que não era o tipo de livro que interessa muito a quem procura ter uma compreensão mais robusta da filosofia de Espinosa e um conhecimento mais rigoroso da sua vida. Para isso há o livro de Nadler, infinitamente melhor, publicado pela Europa-América. 

Mas há outro aspecto acerca da tradução deste livro que me deixou realmente decepcionado. Veja-se como a tradutora justifica a opção pela grafia do nome do filósofo:


A justificação consiste simplesmente em remeter para o que Diogo Pires Aurélio escreveu a propósito da sua tradução do Tratado Teológico-Político de Espinosa. Contudo, o que Pires Aurélio escreve não chega sequer a ser uma justificação e mais depressa justificaria a escolha do nome português Bento em vez do hebraico Baruch. Ele diz que, por sua vez, se limita a seguir Joaquim de Carvalho. Todavia, acrescenta que o próprio Joaquim de Carvalho, numa edição posterior, acabou por optar por Bento em vez de Baruch. Compreende-se o argumento? Eu não.

Se o tradutor abandonou Baruch a favor de Bento numa edição posterior é porque alguma informação ou pesquisa adicional o levou a fazer essa correcção. Qualquer pessoa concluiria que, vindo da parte de um estudioso e tradutor do filósofo, a segunda e definitiva opinião estaria mais bem fundamentada do que a primeira. Mas Pires Aurélio conclui, sem mais, precisamente o oposto. Para isso, mais valia não citar sequer Joaquim de Carvalho, dado que este acaba por lhe retirar o apoio que procura. 

Pires Aurélio não evita acrescentar que Joaquim de Carvalho simplesmente cedeu "à tentação de aportuguesar [o nome do filósofo], escrevendo Bento de Espinosa". E por que não apontar também a cedência à tentação, a que o próprio Pires Aurélio não resistiu, de escrever Espinosa em vez de Spinoza? É isso coerente? Penso que não.

De resto, é deveras surpreendente que, como tradutor de Espinosa, Pires Aurélio não tenha em conta factos acerca de Espinosa há muito revelados. Talvez tenha sido precisamente o conhecimento desses factos que levou Joaquim de Carvalho a substituir Baruch por Bento. Eis alguns desses factos incontroversos:

- Em praticamente todos os documentos e registos originais encontrados, o nome do filósofo é "Bento", em português. Era chamado pela família por esse nome e conhecido por esse mesmo nome na própria comunidade judaica de Amsterdão. Há duas excepções em documentos posteriores, uma das quais é o documento do herem, que decreta a expulsão de Baruch da comunidade judaica.

- Bento e seu irmão Grabriel abriram, em Amsterdão, uma empresa comercial após a morte do pai. O nome da firma era precisamente "Bento y Gabriel Despinoza".

-  Baruch significa em hebraico o mesmo que Benedictus em latim e Bento em português, ou seja: abençoado. Baruch era sobretudo usado no contexto das actividades religiosas judaicas, Benedictus era a tradução para a língua culta em que geralmente se publicava na altura. O próprio Descartes tem obras publicadas na altura com os nomes Renatus e Renati; e também Des Cartes e Cartesius. 

- Após a sua expulsão da comunidade judaica, o jovem filósofo anunciou não querer ser chamado pelo nome hebraico Baruch. Na altura ainda não tinha obra relevante publicada.

- As obras de Espinosa foram quase todas publicadas pela primeira vez logo após a sua morte. O nome do autor surge apenas como "B. d. S.", sendo provavelmente a abreviatura de "Benedictus de Spinoza", pois era o latim que se costumava usar. Parece ter sido por indicação do próprio. O nome hebraico Baruch não costuma ser seguido por um "de".

Garanto que não inventei nada disto e que nem sequer foi preciso pesquisar muito. Está tudo disponível, mesmo em português. Mas o que resulta daqui? Que os primeiros a aportuguesar o nome do filósofo foram os seus próprios pais, tanto que foi esse o nome que lhe deram e pelo qual o chamavam (os pais de Espinosa tinham, de resto, dificuldade em falar bem outras línguas que não o português). 

E se há opção completamente injustificada é precisamente Baruch, pois o próprio filósofo deixou claro que nunca mais queria ser identificado com esse nome. Quem achar provinciano usar o nome português Bento, que opte então por Benedictus e nunca por Baruch. Mas, já agora, por que não usar, no caso de Descartes, também o seu nome latino?

Em suma, traduzir não é uma tarefa fácil e ninguém está livre de fazer más opções. Mas este parece-me um caso sui generis, pois fica-se com a ideia de que se trata de uma espécie de provincianismo invertido. Será que isto faz sentido?

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