Eu estabeleço uma distinção entre aquilo que é objectivo e aquilo que é tangível, espacial, real. O eixo da Terra ou o centro de gravidade do sistema solar são objectivos, mas não lhes chamaria reais como o faço com a Terra. Chama-se frequentemente ao equador uma linha imaginária; mas seria falso chamar-lhe uma linha fictícia. O equador não é criado pelo pensamento, não é o resultado de um processo mental; ele é apenas conhecido ou apreendido pelo pensamento.
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domingo, 5 de julho de 2020
É objectivo mas não é real, diz Frege
sexta-feira, 26 de junho de 2020
Deus existe? O essencial
quinta-feira, 25 de junho de 2020
Diferentes tipos de objectividade e a objectividade dos juízos morais
Se não houver factos morais, também não poderá haver juízos morais objectivos? Eis o que diz John Rawls sobre isso (com algumas adaptações à tradução portuguesa, que deixa algo a desejar).
Estou a pensar naqueles que sustentam que a objectividade dos juízos e das crenças depende de disporem de uma explicação adequada que se inscreva numa perspectiva causal do conhecimento. Esses entendem que um juízo (ou uma crença) só é objectivo(a) quando o conteúdo do nosso juízo é (em parte) função de um tipo apropriado de processo causal que afecta a nossa experiência perceptiva, por hipótese, aquela em que se baseia o nosso juízo. […]
Por exemplo, o nosso juízo perceptivo de que o gato está no tapete é o resultado (em parte) de um adequado processo causal que afecta a nossa experiência perceptiva de o gato estar no tapete. […] Na mesma linha, até as próprias crenças dos físicos teóricos serão explicadas desta forma. O predicado da objectividade só se associa a estas crenças se dispõe de uma explicação que mostra que a sua afirmação por parte dos físicos é (em parte) o resultado de processo causal adequado, relacionado com o facto de o mundo ser aquilo que os físicos imaginam que é.
[…] Admitimos que o requisito causal faz parte de uma concepção da objectividade apropriada para os juízos da razão teórica, ou, pelo menos, para grande parte da ciência natural, e também para os juízos perceptivos.
No entanto, esse requisito não é essencial para todas as concepções da objectividade, e seguramente não o é para uma concepção adequada para o raciocínio moral e político. Isso é posto em evidência pelo facto de não exigirmos de um juízo moral ou político que as razões que o sustentam mostrem que ele se encontra ligado a um processo causal adequado, nem exigimos uma explicação dele no âmbito da psicologia cognitiva. Pelo contrário, basta que as razões apresentadas sejam suficientemente fortes. Nós explicamos o nosso juízo, na medida em que o fazemos, simplesmente através da sondagem dos seus fundamentos: a explicação assenta nas razões que sinceramente afirmamos. Que há mais a dizer, excepto questionar a nossa sinceridade e a nossa razoabilidade?
É evidente que, dados os muitos obstáculos que se colocam ao acordo sobre o juízo político, mesmo entre pessoas razoáveis, não chegaremos sempre, ou até na maior parte das ocasiões, a acordo. Mas devemos, pelo menos, ser capazes de reduzir as nossas diferenças e chegar, assim, próximo de um acordo, e isso à luz do que consideramos serem os princípios e critérios partilhados de raciocínio prático.
J. Rawls, O Liberalismo Político. Lisboa: Editorial Presença, 1996, pp. 128-129.
quarta-feira, 24 de junho de 2020
Filosofia da morte
Já não era novo, mas estava ainda longe da velhice, embora a sua posição na hierarquia militar pudesse fazer supor o contrário. O General Grant morreu há pouco mais de quinze dias. A sua morte, não sendo repentina, apanhou‑o bastante de surpresa, visto que há menos de um mês parecia gozar de plena saúde. Excepto no último dia, a doença não o fez sofrer muito. Manteve‑se lúcido até ao fim, pelo que dispôs de tempo suficiente para se despedir dos amigos, revisitar alguns livros, planear o seu próprio funeral e escolher a sua sepultura, que sobretudo havia de ser modesta.
O interesse pelas indagações filosóficas levou o General Grant a frequentar o salão de Lady Lucy, em Londres, onde se reuniam alguns dos espíritos mais sagazes da cidade — e também um segmento apreciável de pedantes e bajuladores, na sua opinião. Quando Lady Lucy o visitou pela última vez, o general, ciente da iminência do seu fim, fez‑lhe um único pedido. Gostaria de uma espécie de homenagem póstuma, que seria esta: para celebrar o seu gosto pela filosofia, ser‑lhe‑iam dedicadas várias sessões de discussão filosófica. Três, mais precisamente, uma por semana e todas sobre o mesmo tema: a morte. Deixaria escritas três perguntas muito sucintas, selando cada uma delas num envelope numerado, que só deveria ser aberto à hora prevista para o começo do debate. Assim fez. A Lady Lucy, como de costume, caberia moderar as discussões, sem se inibir de ter voz activa nas mesmas. Estas, no entanto, deveriam ficar confinadas a um círculo muito estrito do seu salão, constituído por apenas quatro pessoas, e isto a contar com ela própria. Vejamos então, por idade decrescente, a quem o General Grant confiou a realização do seu desejo final.
O mais velho é o Prof. Pohl, um médico alemão, agora distinto professor de filosofia natural e experimental. Descendo à meia‑idade, encontramos o Rev. Royce, escocês, arguto defensor da ortodoxia contra as opiniões dos livres‑pensadores, porém bastante desprovido de animosidade e sempre disponível para uma troca franca de ideias. Lady Lucy estranhou a última escolha: Pierre Perrier, um jovem literato francês muito dado à boémia e autor de um par de peças teatrais, ainda por representar, bem como de alguns panfletos anónimos que indispuseram meia cidade.
De pessoas tão singulares e diversas, alguma vez poderia resultar uma série de conversas aborrecidas?
sábado, 4 de abril de 2020
O mais importante defensor da teoria institucional da arte
Estava tentado a sublinhar a coincidência de, nestes últimos dias, ter em cima da secretária os seus livros The Art Circle: A Theory of Art (1997) e Art and Value (1998). Mas, dada a frequência com que os tenho à mão, não se trata definitivamente de uma coincidência. No primeiro desses livros, Dickie defende uma versão refinada da sua anterior definição institucional da arte; no segundo encontramos outro dos seus importantes contributos para a filosofia da arte, desta vez acerca do valor e da avaliação da arte.
Há ainda um outro tema da estética em que Dickie se notabilizou e que foi a sua crítica incisiva ao que ele mesmo designou como o mito da atitude estética. No capítulo sobre estética e filosofia da arte que escrevi para o livro organizado por Pedro Galvão, Filosofia: Uma Introdução por Disciplinas (Ed. 70, 2012), apresento de forma muito abreviada o essencial dessa crítica.
Em homenagem a George Dickie, reproduzo abaixo uma passagem do que aí escrevi (pp. 391-393).
De acordo com as teorias da atitude estética temos experiências estéticas porque, diante de muitos artefactos e objectos naturais, adoptamos um modo especial de percepção diferente do normal. Perguntar por que razão temos experiências estéticas em relação a um dado objecto não é uma questão de identificar as propriedades desse objecto que provocam em nós tais experiências, mas antes de tomar em relação a ele uma atitude diferente da atitude prática. Isto explica por que razão, diante do mesmo artefacto ou objecto natural, tanto podemos ter como não ter experiências estéticas: tanto podemos adoptar uma atitude estética como uma atitude normal em relação a eles. A experiência estética é, assim, uma questão de atitude, restando apenas esclarecer em que consiste tal atitude. Isso faz-se, segundo alguns proponentes desta abordagem, identificando os factores psicológicos que nos levam a percepcionar os objectos de modo diferente do habitual. […]Uma atitude, explica Stolnitz, «é uma maneira de dirigir e controlar a nossa percepção», centrando a nossa atenção de forma selectiva numas coisas em vez de outras. A atitude que adoptamos determina, assim, a forma como percepcionamos o mundo. Mas a atitude mais habitual não é estética; á a atitude prática, que nos leva a encarar as coisas como meios para outros «fins que estão para lá da experiência de as percepcionar». Ao passo que a atitude prática é utilitária, a atitude estética leva-nos a concentrar a nossa atenção exclusivamente no próprio objecto, excluindo qualquer tipo de interesse pessoal ou outro. É neste sentido que Stolnitz fala de atenção desinteressada, procurando também mostrar que a experiência estética deixa de estar associada à beleza, pois é possível descrever como estéticas experiências acerca de coisas que não só não são arte como nem sequer são belas: qualquer coisa se pode tornar um objecto estético e proporcionar experiências estéticas, desde que tenhamos uma atitude estética em relação a ela.As críticas mais contundentes à teoria da atitude estética foram apresentadas por George Dickie num famoso artigo de 1964 sugestivamente intitulado «Todas as Teorias da Atitude Estética Falham: O Mito da Atitude Estética». A estratégia de Dickie consiste basicamente em pegar em exemplos que alegadamente ilustram a distinção entre atenção interessada e atenção desinteressada para mostrar que eles não mostram o que era suposto mostrarem, concluindo que tal distinção não se justifica. E assim deixa também de haver justificação para falar de atitude estética.Dickie dá o exemplo de uma estudante do conservatório que ouve atentamente uma dada peça musical com o propósito de se preparar para um exame. Dir-se-ia que, dado haver um propósito ulterior, a sua atenção não é desinteressada, ao contrário daquela pessoa que ouve a mesma peça sem qualquer outro propósito. Mas será que encontramos aqui dois tipos diferentes de atenção? Dickie diz não haver qualquer razão para pensar tal coisa, pois ambos podem prestar atenção aos mesmos aspectos e ambos podem reagir da mesma maneira, gostando do que ouvem ou aborrecendo-se com isso, independentemente dos motivos que os levaram a ouvir essa música. É certo que um pode estar mais atento a certos aspectos do que outro, mas estar mais ou menos atento não é o mesmo que haver diferentes espécies de atenção, pois a natureza da atenção não se altera por isso, do mesmo modo que não estamos perante diferentes espécies de febre quando uma pessoa tem 38º e quando tem 39º de temperatura. Mesmo que o primeiro ouvinte preste atenção a certos pormenores e o segundo não, isso não mostra que eles têm um tipo diferente de atenção, pois não prestar atenção a algo é estar desatento, não é ter um tipo diferente de atenção. Prestar atenção a umas coisas em detrimento de outras apenas mostra que há diferentes motivações e não diferentes tipos de atenção. Assim, quando falamos de interesse e desinteresse estamos a falar de motivação e não de atenção.Outro exemplo, referido por Dickie, de suposta atenção não desinteressada é o de alguém que, numa exposição de pintura, repara num quadro que lhe evoca situações por que passou, levando-o a deter-se diante dele ao mesmo tempo que recupera memórias antigas. Mais uma vez, e ao contrário do que Stolnitz pensa, não é correcto concluir que há aqui uma espécie de atenção interessada. O que há é desatenção, pois a atenção deslocou-se do quadro para algo diferente: as memórias por ele despertadas. Deste modo, Stolnitz chama erradamente «atenção interessada» à desatenção.
sábado, 21 de março de 2020
O problema mente-corpo
Segundo ela, as respostas certas para as perguntas relevantes eram, então, as seguintes:
— What is matter?
— Never mind.
— And what is mind?
— No matter.
Tanta coisa para quê, afinal?
sexta-feira, 20 de março de 2020
As desigualdades, o socialismo e o capitalismo
Girando em torno de um núcleo comum, são análises de pontos de vista diferentes (seja pelas áreas disciplinares em que se inserem, seja pelas teorias que sustentam) mas que se complementam, mesmo se não coincidindo (ou ainda mais por não coincidirem) nas conclusões. Valem ainda pela honestidade intelectual, pela ausência de dogmatismo, pelo distanciamento afetivo com que investigam um assunto que muitas vezes é visto com a lupa da paixão clubística; pela consistência ou objetividade da fundamentação, baseada em dados históricos e estatísticos ou no rigor lógico; pelo jogo de contra-argumentação.
Para o leitor de língua portuguesa interessado nestas áreas de estudo, acresce outra razão a favor destas leituras: a carência de bibliografia que não seja “ortodoxa”. Não estou a sugerir a rejeição, por princípio, da ortodoxia, mas tão-só a supor a necessidade de uma releitura, crítica, do marxismo tradicional; da eventual reformulação dos seus princípios ou, no mínimo, do seu questionamento à luz da evolução e das experiências históricas; de avaliações que tenham em conta, simultaneamente, o revés do desaparecimento do “socialismo real” e a (afirmação ou negação da) crença na possibilidade de um sistema económico e político baseado numa norma de igualdade.