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sábado, 31 de dezembro de 2016

Os meus 3 livros do ano

O ano que acaba não me deixa grandes saudades. Mas nem tudo foi mau, claro. Destaco três livros da colecção Filosofia Aberta, que dirijo na Gradiva, e cuja publicação muito gosto me deu.


Este pequeno livro é uma serena e ponderada defesa moral do socialismo, levada a cabo por um filósofo contemporâneo de peso. O seu autor, G. A. Cohen (1941-2009), foi o mais persuasivo, influente e respeitado defensor contemporâneo do pensamento político da esquerda marxista e também um dos mais importantes filósofos políticos das últimas décadas, a par de figuras como John Rawls, Robert Nozick, Ronald Dworkin ou Michael Sandel. Nasceu em Montreal (Canadá), mas foi em Inglaterra que acabou por ensinar a maior parte do tempo, primeiro no University College of London e depois na Universidade de Oxford, onde se veio a tornar emeritus fellow do All Souls College. É autor de vários livros, entre os quais Karl Marx’s Theory of History: A DefenceIf You Are an Egalitarian, How Come You’re So Rich?, Rescuing Justice and Equality e este Socialismo.Porque não?, que foi o último escrito, antes de falecer em 2009, em Oxford.


Este livro é a resposta ao livro de Cohen, em que um acutilante filósofo libertário argumenta não tanto contra o socialismo mas antes a favor da superioridade moral do capitalismo em relação ao socialismo. Jason Brennan doutorou-se em filosofia pela Universidade do Arizona, ensinou na Universidade de Brown e é actualmente professor associado de Estratégia, Economia, Ética e Políticas Públicas na Universidade de Georgetown. É autor de Compulsory Voting: For and Against, com Lisa Hill, Libertarianism: What Everyone Needs to Know, The Ethics of Voting, A Brief History of Liberty, com David Schmidtz e Against Democracy (a publicar brevemente na colecção Filosofia Aberta, com o título Contra a Democracia). A filosofia política e a ética aplicada são as suas duas principais áreas de investigação.



Neste curto ensaio filosófico de um dos grandes filósofos contemporâneos, argumenta-se que somos moralmente obrigados a eliminar a pobreza mas não a diminuir a desigualdade, e que o combate à desigualdade, quando não decorre do combate à pobreza, pode até ser humanamente alienante. Harry G. Frankfurt quase dispensa apresentações. Este Professor Emérito de Filosofia na Princeton University reparte a sua importante obra filosófica principalmente pelas áreas da filosofia moral, da filosofia da mente e da filosofia da acção. Os seus contributos para a discussão do problema do livre-arbítrio fazem dele uma referência nesse domínio. Da sua obra, destacam-se ainda os sucessos de vendas On Bullshit (Da Treta) e The Reasons of Love (a publicar brevemente na colecção Filosofia Aberta, com o título As Razões do Amor).

terça-feira, 22 de novembro de 2016

Fundamentar a proposta


Ainda bem que a proposta de reformulação do programa de Filosofia que aqui apresentei tem suscitado alguma discussão que, em meu entender, tem sido saudável e proveitosa. Contudo, algumas opiniões como a de Domingos Faria e sobretudo a proposta alternativa de Rolando Almeida, além das sugestões de outros colegas no FB, levaram-me a pensar que precisava ainda de esclarecer alguns aspectos.

Começo por reafirmar que ninguém me pediu qualquer proposta e que ela não passa de um simples esboço a merecer outro detalhe. Posto isso, preciso de tornar claro por que razão qualifico a minha proposta de construtiva, por um lado, e minimalista, por outro lado. 

É construtiva porque não se trata de desfazer o programa actual nem sequer de lhe dar uma direcção diferente, até porque não é isso que o ministério solicita. Assim, a ideia motriz é aproveitar o que de melhor tem o programa actual e trabalhar com base nele. 

É minimalista porque, tendo em conta o que acabei de referir, o objectivo é alterar apenas o que, por razões didácticas relacionadas com a gestão da carga horária disponível, tem mesmo de ser alterado, e não mais do que isso. Claro que aqui cabe acrescentar as inevitáveis questões de carácter científico e cabe não desprezar o que tem sido a prática lectiva concreta de centenas de professores. Por isso procurei evitar — a não ser que me parecesse inevitável — alterar a sequência das matérias a lecionar e de introduzir novas matérias, por muito interessantes que as ache. O objectivo é reduzir e não acrescentar ao que já existe. 

A redução consiste basicamente nisto: manter um, e apenas um, problema em cada uma das disciplinas contempladas no programa actual. Assim, os alunos familiarizam-se, de forma mais aprofundada, com a diversidade de disciplinas e problemas filosóficos, em vez de se querer meter cada Rossio filosófico na sua rua da Betesga. A excepção é a ética, dado que as teorias éticas em confronto relacionam problemas subtilmente diferentes, mas conexos. De qualquer forma, penso que todos concordam que a ética é a parte mais importante do programa, juntamente com a teoria do conhecimento no 11.º ano.

A proposta que apresento não constitui, portanto, o meu programa preferido. E mesmo que me pedissem para fazer um programa de raíz, totalmente novo, procuraria abster-me de dar preferência aos meus interesses filosóficos pessoais, privilegiando as áreas que melhor conheço ou domino. É preciso não esquecer que se trata de um programa para os alunos aprenderem o que é mais central, acessível e estruturante, pelo que aquilo que mais me entusiasma filosoficamente pode não ser — e muitas vezes não é — o que melhor serve os alunos. Esquecer isto seria irresponsável e não ter sentido de serviço público. Na verdade, a disciplina filosófica em que mais tenho trabalhado é a estética e filosofia da arte, tendo até publicado alguma coisa na área, mas tenho algumas dúvidas que um programa destas características totalmente elaborado por mim — coisa que, de resto, nunca aceitaria fazer — incluísse problema algum de estética e filosofia da arte.

Apresentados os pressupostos da minha proposta, cabe responder a algumas dúvidas levantadas. Divido-as por conteúdos temáticos.

1. Lógica. Se a lógica é uma ferramenta da actividade filosófica, porquê mantê-la no 11.º ano em vez de a passar, como seria natural, para o 10.º ano? Considero que este é o aspecto em que mais hesitei e em relação ao qual as considerações de vários colegas no sentido de lecionar a lógica no 10.º ano me parecem mais pertinentes. Como disse acima, tive sempre em conta a prática lectiva concreta e a previsível rejeição de muitos professores. Se a minha suposição estiver errada, então há todas as razões para colocar a lógica no início do 10.º ano. Concedo completamente, de bom grado.

Outro aspecto diferente diz respeito a que conteúdos leccionar na lógica. Há quem defenda que se deve manter a opção entre lógica proposicional e a lógica aristotélica. Mas isto parece-me indefensável, por duas fortíssimas razões, uma de carácter científico e outra de carácter didáctico: a primeira é que uma coisa não é alternativa à outra, como já tinha referido e julgo ninguém contestar seriamente; a segunda é que a ideia de que deve haver opção destrói o argumento de que a lógica se justifica por ser uma ferramenta necessária que todos os alunos devem aprender a manejar.

Deixando de lado a primeira, que já foi suficientemente referida, vale a pena pensar melhor na segunda. Como pode a lógica ser uma ferramenta que todos devem dominar e depois dar-se ferramentas diferentes aos alunos, como se eles fossem resolver problemas diferentes? Será que se está a pensar que cada argumento filosófico discutido deve ter uma versão silogística e outra manejável pela lógica proposicional? Ou será antes que os que aprenderam lógica silogística só trabalham com silogismos e outros com raciocínio proposicional? A ser assim, teria de se fazer programas paralelos para quase todos os problemas filosóficos. Mas isso seria absurdo. Talvez a ideia seja a de prever uma quantidade idêntica de argumentos silogísticos e não-silogísticos, de modo que  os que aprendem uma teoria lógica não sejam prejudicados relativamente aos que aprendem a outra. Mas também isto é disparatado. A verdade é que, se o programa é o mesmo para todos e se há raciocínios proposicionais a sustentar as teorias discutidas que não podem ser alternativamente avaliados — nem sequer expressos — com os recursos da teoria silogística, então alguém terá de ficar prejudicado. As ferramentas têm de ser as mesmas para todos, pois diferentes ferramentas servem para tratar de problemas diferentes. Dizer que uns podem usar uma ferramenta e que outros podem usar a outra é reconhecer que qualquer delas é dispensável. Não há, portanto, qualquer razão científica, e ainda menos didáctica ou pedagógica, que justifique tal opção.

Mas há ainda outro aspecto que deve ser tido em conta. Não é forçoso que se dê a lógica optando apenas por uma destas teorias lógicas. Se pensarmos em dar as noções elementares de lógica e argumentação, podemos incluir, além dos aspectos informais, os elementos mais úteis e acessíveis de cada uma das teorias. Assim, seria perfeitamente adequado ensinar, por exemplo, o quadrado da oposição de Aristóteles, que é bem útil, e também noções muito elementares de lógica proposicional. E tudo isso é possível reduzindo substancialmente a lógica formal e informal que actualmente se encontra espalhada pelos dois anos. Pelas minhas contas, o tema da lógica e argumentação — que inclui as noções de argumentação dadas na unidade inicial do 10.º ano e a retórica no 11.º ano — tem previstas um total 22 aulas de 90 minutos, o que equivale a 39 aulas e meia de 50 minutos. O que eu propus foi umas 24 a 25 aulas, considerando aquela parte do módulo inicial. Ora, poderia juntar-se tudo no início do 10.º ano, como muitos sugerem, e apenas 25 aulas de 50 minutos seriam suficientes para se ensinar, no momento certo, as ferramentas do trabalho sem ser preciso voltar à lógica no 11.º ano.

2. Religião e estética. Por que razão estas matérias passam para o 11.º ano e por que razão deixam de ser opcionais, perguntam alguns. Em primeiro lugar, por uma questão de gestão dos tempos lectivos disponíveis em cada ano. A verdade é que não se consegue discutir decentemente tantas matérias no 10.º ano e, portanto, algo terá de transitar para o ano seguinte. Em segundo lugar, com os cortes operados só nestas duas disciplinas é perfeitamente possível leccionar, mas no ano seguinte, um problema de cada uma delas, evitando-se tão indesejável opção. 

3. Livre-arbítrio. Porquê manter uma matéria tão abstracta e complexa como o problema do livre-arbítrio logo no início? Vários colegas sugerem que deveria passar para o fim do 11.º ano. Bom, se nos entusiasmamos demasiado com as alterações, estas deixam de ser minimalistas. Em todo o caso, discordo que o problema do livre-arbítrio seja dos mais difíceis e abstractos. Compare-se, por exemplo, com a dificuldade que é, para muitos alunos, compreenderem adequadamente a autonomia da vontade kantiana ou até o imperativo categórico. Não é por o livre-arbítrio ser um problema metafísico — apesar das suas conexões com a ética, com a filosofia da ciência e com a filosofia da mente — que é mais difícil ou motivador do que outros. Um problema é mais motivador ou menos motivador consoante os alunos já tragam na sua bagagem pré-teórica intuições fortes acerca disso. E creio que é precisamente o que os alunos já trazem consigo neste caso — estou neste momento a discutir o problema nas aulas e não falta animação. Não são poucos o que vêem as suas ideias fatalistas desafiadas ou a ideia, defendida por muitos, de que são livres por fazerem o que querem. E nem sequer é um tema demasiado abstracto, pois é dos que podem perfeitamente ser discutidos com exemplos concretos do quotidiano. 

4. Política. Por que razão tomar como referência apenas a perspectiva de Rawls, ao passo que noutras áreas são explicitamente referidas duas ou mesmo três perspectivas? A verdade é que a teoria da justiça de Rawls se tornou o centro de toda a discussão posterior acerca da justiça social, o que mesmo os seus críticos reconhecem. Digamos que, nesta matéria, há a teoria de Rawls e os seus críticos.

5. Tema livre. O Rolando discordou deste aspecto da minha proposta, alegando que não devia haver temas livres, mas que se devia antes aproveitar algumas aulas para preparar o elaboração de ensaios filosóficos. Não sei se compreendo exactamente o que o Rolando tem em mente, mas parece-me estar a defender que se deve destinar essas aulas à aquisição de metodologias de trabalho filosófico mais avançadas — de que os ensaios seriam o melhor exemplo. Sinceramente, não me parece boa ideia voltar às ferramentas do trabalho filosófico assim em seco. Nessa fase já deveria ser possível aos alunos desenvolverem essas capacidades — que, aliás, poderiam ter sido usadas antes —, aplicando-as a algum tema filosófico. Por isso mesmo, os professores, eventualmente em conjunto com os alunos, estarão em melhores condições de escolher que temas filosóficos melhor poderão satisfazer esse objectivo. Além disso, é mesmo muito importante não ser totalmente directivo e deixar espaço para cada professor dar o seu próprio contributo para o leque de conteúdos que os alunos irão trabalhar e, desejavelmente, dar um pouco a palavra a alunos, que se espera sejam também capazes de exercer um pouco da sua autonomia filosófica.

Finalmente, uma nota sobre a bibliografia. É importante sublinhar que se trata de um conjunto de recomendações e de obras de referência sobre os problemas que constam do programa, pelo que não deve ser encarada como se da bibliografia de um ensaio se tratasse. Não se espera, portanto, que seja apresentada a bibliografia consultada para elaborar o programa, mas antes de um conjunto de propostas de leitura acessíveis e orientadoras para alunos e professores — umas de consulta e outras de referência — sobre os conteúdos a leccionar. Assim, além das obras relevantes dos filósofos de referência mencionados no programa, tudo o que é preciso é um conjunto de obras de consulta que os alunos sejam capazes de ler por si próprios: um par de dicionários de filosofia, uma ou duas boas histórias da filosofia e um conjunto de obras introdutórias aos temas e disciplinas em apreço.  


sábado, 19 de novembro de 2016

Filosofia: uma proposta construtiva e minimalista

De acordo com o jornal Público, as mudanças curriculares, cuja proposta está, no caso da Filosofia, a ser levada a cabo pela Associação de Professores de Filosofia (APF), visa "uma melhor gestão curricular" e procura, por isso, elencar "as aprendizagens essenciais" da disciplina. 

Em suma, trata-se de ir ao que é realmente central, tornando isso o mais claro possível. A finalidade é, portanto, evitar que se aprenda à pressa e apenas pela rama uma quantidade enorme de matérias, que podem até não ser as mais estruturantes e significativas. 

A ideia de reduzir o elenco de matérias é muito bem vinda, pois a verdadeira discussão em sala de aula dos problemas filosóficos e das principais respostas a esses problemas exige tempo. Este aspeto fundamental da aprendizagem filosófica tem sido contrariado por programas extensos, quase enciclopédicos, que frequentemente fazem da disciplina uma espécie de coleção de ideias que os alunos se limitam a decorar e a repetir, esvaziando a disciplina da sua verdadeira natureza filosófica. E que não se culpe os professores, pois eles não fazem milagres, até porque não podem deixar de cumprir o programa.

Por sua vez, é imperioso não apenas identificar os conteúdos centrais mas também fazê-lo da forma mais clara para todos, até porque se trata de conteúdos sujeitos a avaliação externa e não deve haver ambiguidades quanto ao que é suposto ser avaliado. 

Dado que o objetivo aqui é selecionar e reformular o essencial do que o programa em vigor já contempla, é de esperar que as divergências sejam meramente pontuais. Não vale a pena esconder que diferentes perspetivas filosóficas e metodológicas são possíveis. Mas isso é um problema maior quando se parte do zero e quando se tem em vista um elenco tendencialmente maximalista. Desta vez, estamos perante a situação inversa: parte-se de um programa já assimilado por todos e do qual há apenas que selecionar e clarificar o mais importante, de acordo com a longa tradição filosófica que se mantém viva até aos nossos dias. Creio também que os mesmos conteúdos admitem, sem conflitos de maior, diferentes abordagens metodológicas, as quais devem ser da exclusiva responsabilidade de cada professor.

Em todo o caso, o secretário de estado teve o cuidado de esclarecer, como se lê no Público, que "convidou as associações de professores a estabelecerem as parecerias que considerem 'relevantes', o que poderá passar pelas sociedades científicas". Posto isto, não acredito que a APF não venha a convidar a SPF para dar também o seu contributo, caso ainda o não tenha feito.

Como é natural, ninguém pediu o meu contributo, mas tomo a liberdade de deixar aqui a minha opinião sobre o que poderia ser um renovado programa. Bem vistas as coisas, como muitos outros professores de filosofia, sou parte interessada e não me parece boa ideia silenciar os meus legítimos interesses.

A minha proposta procura preservar os aspetos positivos do programa actual, a saber: a) incidir nas principais disciplinas filosóficas tradicionais; b) partir dos problemas em vez dos autores; c) manter conteúdos abertos, de modo a que cada professor possa, razoavelmente, imprimir o seu cunho pessoal, e porque nem tudo precisa de estar sujeito a avaliação externa.

Mas procura também evitar os seus aspetos menos positivos, a saber: a) as disciplinas filosóficas em causa não serem identificadas de forma clara, como é habitual fazer-se; b) os problemas filosóficos não serem explicitamente enunciados ou formulados, prestando-se a confusões conceptuais; c) incluir conteúdos de interesse meramente histórico e de menor relevância filosófica, à luz da generalidade da bibliografia filosófica disponível; d) o seu carácter frequentemente vago e prolixo; e) opções didáctica e cientificamente injustificadas; f) bibliografia inadequada para o nível de ensino e a faixa etária dos alunos do secundário; g) a incongruente, em termos filosóficos, proposta de gestão dos conteúdos.

Os quadros seguintes (clicar em cima para ampliar) apresentam lado a lado os conteúdos do programa em vigor e a minha proposta, de modo a que se perceba melhor as opções feitas. Na gestão das unidades temáticas conto apenas com aulas de 50 minutos, dado que é essa a duração das aulas em muitas escolas (nesses casos, a Filosofia dispõe frequentemente de apenas 150 minutos semanais).

10.º Ano

Até aqui, há a salientar a clara divisão das unidades programáticas em função dos problemas e disciplinas filosóficas tradicionais, o que, só por si, já é mais esclarecedor e orienta melhor os próprios alunos, a quem já se explicou na unidade inicial quais as principais disciplinas da filosofia. A parte da definição da acção, ou da chamada "rede conceptual da acção" também é eliminada, pois a abordagem proposta no actual programa é demasiado esquemática, sem prever qualquer discussão filosófica. Sem dúvida que a filosofia da acção é campo de importantes discussões filosóficas, mas isso exigiria outros aprofundamentos, que não constam do programa e que consumiriam mais tempo.


Como se pode ver aqui, deixa de haver filosofia da religião e estética no 10.º ano. Qualquer professor sabe que o tempo disponível não é suficiente para lecionar todos os conteúdos previstos para o 10.º, que tem muito mais conteúdos do que o do 11.º ano. Os conteúdos anteriores são mais do que suficientes para nos ocupar o ano inteiro.

11.º Ano

A novidade aqui é o desaparecimento da chamada "lógica aristotélica". Será esta a mudança que mais adaptações exigirá da parte de muitos professores. Mas aqui as razões são de carácter científico — dêem-se as voltas que se derem, não é simplesmente verdade que a lógica aristotélica e a lógica proposicional clássica constituam diferentes paradigmas, dado que uma teoria lógica de modo algum é alternativa à outra. Mesmo em termos meramente instrumentais, não se justifica ensinar a lógica aristotélica em detrimento da lógica proposicional clássica. Além disso, por muito estranho que possa parecer a muitos, os rudimentos da lógica proposicional clássica não são, de todo em todo, mais difíceis de apresentar nem de aprender. No fundo, a minha proposta é simplesmente ensinar as noções elementares de lógica, que possam ser realmente úteis na discussão e clarificação de uma boa parte das teses filosóficas. Só não incluí o estudo da lógica no início do 10.º ano, como seria mais adequado, porque imagino haver demasiada resistência da parte dos professores a isso. Acho essa resistência injustificada, mas não podemos deixar de ter em conta a realidade.

Na parte da ciência, não dá para trabalhar mais do que um problema e o que parece mais óbvio lecionar é o do método científico. De resto, no programa actual os problemas do método, da racionalidade e da objectividade (e ainda um arremedo do problema da demarcação entre senso comum e ciência) estão algo embrulhados, o que tem levantado dificuldades didácticas não desprezíveis. 

Outra novidade é aparecerem no 11.º ano, e sem opções, as questões de Deus e da arte. Com o que se elimina na lógica e argumentação (sim, fica mais curta, pois deixaria de se lecionar os temas de carácter essencialmente histórico sobre a relação entre filosofia, retórica e democracia, além de a lógica propriamente dita ficar mais curta) e também o que se elimina na filosofia da ciência, dá para tratar um problema central da filosofia da religião e outro problema central da estética e filosofia da arte. Recorde-se que o actual programa do 11.º ano já é mais curto do que o do 10.º.


E terminaria com um tema completamente livre, escolhido pelo professor ou pelo professor e os alunos ou pelos grupos disciplinares de cada escola. 

Esta minha proposta poderia ser mais detalhada e tenho ideias sobre isso. Poderia ainda falar sobre a bibliografia recomendada pelo programa ou até das sintomáticas considerações iniciais sobre a justificação do ensino da filosofia. Mas o que aqui deixo já é suficiente para dar uma boa ideia do que defendo. Já é suficiente para suscitar eventuais críticas dos leitores. Espero bem que existam e aguardo por elas com toda a abertura.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

O mundo é uma narrativa divina?

E Deus disse: haja luz; e houve luz. E Deus chamou à luz dia; e às trevas chamou noite.                         
                           
                                                                                                                             Génesis, 1: 3-4

No princípio era o verbo, e o verbo estava com Deus, e Deus era o verbo. Este no princípio estava com Deus. Todas as coisas existiam por ação dele e sem ele existiu nem uma só coisa que existiu. Nele estava a vida e a vida era a luz dos homens. E a luz brilha na escuridão e a escuridão não dominou a luz.
                                                                                                                                            João, 1: 1-5


Como começa por nos explicar João no seu evangelho, foi com palavras (verbo) que tudo foi criado: a luz, o dia, as trevas, a noite e tudo o mais que existe no mundo.
Como surgiu e o que fez surgir a luz? O Génesis dá a resposta: foram as palavras criadoras “haja luz”. E como se explica que dia e luz sejam o mesmo? Mais uma vez, lemos no Génesis, foi Deus — que é verbo — ter chamado dia à luz.
Assim, tudo o que existe passou a existir graças à ação da palavra e o mundo é literalmente feito com palavras. Por isso lemos que “Deus disse” e “Deus chamou”, em vez de “Deus pensou”, “Deus construiu” ou sequer “Deus fez”. O próprio criador, adverte João, era o verbo, a palavra criadora.
A palavra dita — não o pensamento, nem a imaginação nem sequer a vontade — é, pois, a razão de ser de tudo. Porque tudo vem de Deus e Deus é verbo e o verbo é o logos. E sem a palavra fundadora, nada chega a existir. Razão e palavra (ou verbo) são, afinal, a mesma coisa. Talvez por isso seja indiferente traduzir o termo original grego — logos — da mais antiga versão da  Bíblia por razão ou por palavra (ou verbo).
João sugere, deste modo, que o ímpeto gerador de tudo quanto é real se deve ao logos e não, como muitos têm defendido, à procura da perfeição nem à satisfação do desejo, e muito menos à necessidade ou à vontade transformadora manifestas na práxis (prática) e na téchnê (habilidade). Neste sentido, não apenas “razão” e “palavra”, mas também “realidade” significam o mesmo, o que parece concordar com o que alguns espíritos aparentemente obscuros, como Heraclito e Hegel, têm afirmado: tudo é logos, sustenta o obscuro filósofo pré-socrático; e tudo o que é real é manifestação divina da Razão Absoluta, acrescenta por sua vez o seu distante, e igualmente obscuro, discípulo alemão. Para muitos, isto tem a vantagem de preservar o mistério divino — e, desse modo, a inexplicável grandeza do criador, que é verbo — que consiste em compreender como podem as palavras “haja luz”, sem mais, gerar luz. Será que o mundo mais não é, afinal, do que uma narrativa divina, uma criação literária de Deus?
Os adeptos da tese de que a verdade não passa de uma narrativa poderiam até socorrer-se da teoria dos actos ilocutórios de J. L. Austin, exposta em Como Fazer Mundos com Palavras (publicado postumamente em 1962). Este filósofo da linguagem comum explicou aí como se podem fazer coisas com palavras. Faz todo o sentido perguntarmos o que, além de produzir sons articulados, está uma pessoa a fazer quando fala. Sem dúvida que essa pessoa pode estar a fazer coisas diferentes: pode estar a dar uma informação (sobre a hora da reunião de amanhã) ou a fazer uma promessa (prometendo ir à reunião); a dar uma ordem (é o juiz que dá ordem de prisão) ou a estabelecer algo (declarar um dia como feriado nacional ou baptizar alguém, dando-lhe um nome). Tudo isto é fazer coisas diferentes, usando apenas palavras. Com elas se proíbe e se insulta; se ajuda e se destrói; se condena e se liberta alguém; se passa de solteiro a casado e de estudante a doutor. Alguém que usa as palavras para difamar uma pessoa está a fazer algo diferente daquele que usa palavras para a consolar. Assim, tal como realizamos diferentes ações com as mãos — cumprimentar alguém, disparar uma arma, coçar a cabeça, etc. —, também realizamos diferentes ações com palavras.
Não custa, pois, admitir a possibilidade de alguém com autoridade suficiente ter determinado que algo é censurável declarando apenas “Isto é mau” ou “Não deves fazer isso” ou “Eu não aprovo isso”. E não só no Êxodo (20: 1-17) Moisés procura transmitir isso ao seu povo — “Não matarás”, “Honrarás pai e mãe”, etc. — como é reafirmado nos evangelhos pela voz do verbo divino incarnado, que Jesus diz ser. A ideia de que a distinção entre bem e mal resulta da palavra de Deus, de que a moral se funda nos mandamentos divinos, é demasiado popular para soar estranha. Pode ser uma ideia errada, mas não é inconcebível.
Todavia, a ideia de que não apenas a moral mas tudo quanto existe é feito de palavras, exige um falante com um poder da palavra inaudito. Ainda que se trate de palavras divinas, a realidade parece incluir muito mais do que a teoria dos actos de fala de Austin pode abarcar. O crente no mundo como mera narrativa divina e que não se satisfaz totalmente com a ideia de que os mistérios de Deus são insondáveis, precisa talvez de uma super-teoria dos actos de fala, que inclua actos de fala divinos.
Apesar da grandeza e criatividade de muitas obras de arte literárias — como é, para muitos, o caso da Bíblia — talvez o mundo seja algo mais do que literatura.
Sem dúvida que se fazem coisas com palavras. Mas não se vê bem como consegue Deus escrever a sua narrativa sem usar caneta. Nem como consegue fazer canetas só com palavras. 

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Ensinar para quê?

Este esquema resume parte da comunicação que fiz em Março de 2016 no Conselho Nacional de Educação, a publicar na página desta instituição. Aí procurei caracterizar as diferentes finalidades do ensino, argumentando filosoficamente a favor de uma delas. Numa segunda parte, e em conformidade com a perspectiva defendida, apresentei também um esboço de proposta para o ensino da filosofia.


quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Onde há pessoas há luz



Esta imagem da Europa iluminada é fantástica. É uma imagem de uma pequena parte da Terra, mas quase parece a imagem espelhada dos céus, como se fosse o recorte de uma daquelas belíssimas fotos das galáxias, tiradas com o auxílio de potentes telescópios. Só que, ao contrário das galáxias, todos estes pontos e estas manchas luminosas são artificiais. Onde há mais luz é onde há mais pessoas.

Que cidades serão aquelas, onde as pessoas mais se concentram? Num exercício mais ou menos ocioso, dei-me ao trabalho de procurar a resposta na edição de 2016 de Demographia: World Urban Areas, de que seleccionei apenas as 50 mais populosas áreas urbanas europeias. Não se trata das maiores cidades, mas das mais populosas áreas urbanas, quase todas elas ligadas às maiores cidades. O resultado é o que está na tabela seguinte (na segunda coluna é indicado o lugar que essas áreas urbanas ocupam na lista das mais populosas do mundo e, como se vê, a mais populosa área urbana da Europa é apenas a 15.ª em termos mundiais). Note-se também que as áreas urbanas mais populosas não são necessariamente as maiores; algumas áreas urbanas mais pequenas do que outras podem, contudo, ter mais população devido à sua maior densidade populacional.    


Como uma coisa leva a outra, a curiosidade levou-me a pesquisar os resultados por país e alinhavei os quadros seguintes (os dados sobre Portugal foram retirados de outras fontes também, pois este relatório só refere as áreas urbanas portuguesas de Lisboa e do Porto). 

Quem for de férias e gostar de encontrar muitas pessoas, pode encontrar aqui algumas ideias. Por sua vez, quem preferir algum sossego, pode ficar também com uma ideia do que evitar. 







segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Sonhos para as noites de Verão

Para muitos de nós as férias de Verão começaram hoje. Além de outras coisas repousantes, podemos agora levantar-nos um pouco mais tarde e ter sonos mais prolongados. 

Sonos prolongados trazem mais sonhos. É, pois, tempo para todos os sonhos do mundo. Desidério Murcho sonhou acordado e registou esses sonhos no livro acabado de publicar pelas Edições 70, surpreendentemente intitulado Todos os Sonhos do Mundo e Outros Ensaios. Esta é a minha sugestão de leitura para as férias. 

É um livro que tem a vantagem de se poder ler acordado, de modo a não interferir nos outros sonhos que temos enquanto dormimos. Assim, podemos tentar realizar o sonho de passar as noites e os dias a sonhar todos os sonhos do mundo, incluindo o sonho de voar com os pés bem assentes no chão — a que se chama filosofia.

Deixo abaixo um curto excerto, só para preparar a viagem a este intrigante mundo dos sonhos.

Boas férias..., quer dizer, bons sonhos..., quer dizer, boas leituras!


A filosofia atrai as pessoas que gostam da aventura de pensar, e que não têm medo de saber que não sabem. Em filosofia tendemos a pensar que somos mais sábios quando sabemos que não sabemos do que quando pensamos que sabemos mas não sabemos.
Muitas pessoas irritam-se com a filosofia porque querem respostas e já se esqueceram da excitação que é procurar respostas a perguntas tão difíceis que não há respostas consensuais entre os especialistas. Esqueceram-se da excitação que é explorar o desconhecido, sem garantia alguma de descobrir todos os seus mistérios. Para essas pessoas, a filosofia é incompreensível porque, em vez de nos dar uma só resposta para cada problema, dá-nos várias: são as várias tentativas dos filósofos para responder adequadamente aos problemas da filosofia. Só que outros filósofos discordam, e então gera-se uma discussão de ideias.
Para quem gosta de raciocinar, a filosofia é a coisa mais preciosa que temos. Muitíssimo mais preciosa do que a ciência, muitíssimo mais preciosa do que as artes, muitíssimo mais preciosa do que as religiões. Porque é na filosofia que ficamos frente a frente com as perguntas mais difíceis que os seres humanos são capazes de fazer, e não desistimos de tentar responder da maneira mais rigorosa possível, sem abandonar a nossa racionalidade comum, sem invocar autoridades — seja autoridades religiosas, seja autoridades científicas, seja até autoridades filosóficas! 

sábado, 9 de julho de 2016

Cabanas inspiradoras

Que tal passar as férias numa cabana, longe das multidões? Tudo indica que as cabanas são lugares de inspiração e de trabalho criativo. A título de exemplo, refiro aqui algumas cabanas nas quais grandes escritores, filósofos e compositores encontraram inspiração.

O enorme compositor GUSTAV MAHLER (1860-1911) compôs a maior parte das suas obras em cabanas, todas elas na região dos Alpes. 

Na cabana de composição de Steinbach, Mahler compôs parte da Segunda Sinfonia (Ressurreição) e todos os seis andamentos da enorme Terceira Sinfonia. Parece que quando o então jovem maestro Bruno Walter foi visitar o compositor a Steinbach parou à porta da cabana para contemplar a bela paisagem do lago rodeado de montanhas. Mahler terá advertido Walter: "Não precisa de ficar para aí especado a olhar. Eu já compus isso tudo!" Estava, nessa altura Mahler a terminar a sua Terceira Sinfonia.

A cabana de Steinbach, na Áustria

Problemas pessoais levaram Mahler a escolher outra cabana: Marienigg. Foi nesta que ele compôs as Quarta, Quinta, Sexta, Sétima e Oitava sinfonias, além dos maravilhosos ciclos de canções Rückert Lieder e Kindertotenlieder (Canções das Crianças Mortas). Parece que Mahler passava dias inteiros de Verão a compor, dando instruções rigorosas para nunca ser incomodado. A própria criada que, pela manhã, costumava deixar algo para comer na cabana, tinha de ir por um caminho diferente para não se cruzarem quando ele se dirigia para o seu trabalho. 

A cabana de Marienigg, também na Áustria

A terceira cabana de composição de Mahler foi a de Toblach, e foi nela que compôs aquela que é talvez a sua mais irresistível obra: A Canção da Terra.

A cabana de Toblach, que actualmente se chama Dobbiaco e fica na Itália

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Outro grande compositor que encontrou inspiração numa cabana foi o norueguês EDVARD GRIEG (1843-1907), compositor das famosas Suites Peer Gynt e de um excelente Concerto para Piano e Orquestra em Lá menor. A cabana situa-se em Troldhaugen, na Noruega.

A cabana de Grieg

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Mas também há cabanas filosóficas famosas, entre as quais a que LUDWIG WITTGENSTEIN (1889-1951) construiu na perdida Skjolden, num remoto fiorde da Noruega. Fo aí que Wittgenstein engendrou o que viria a ser o seu famoso Tractatus.

A cabana de Wittgenstein em Skjolden, na Noruega

Actualmente só já se encontram os restos da cabana de Wittgenstein

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Também não podia faltar a cabana de MARTIN HEIDEGGER (1889-1976) na Floresta Negra, refúgio onde o filósofo alemão certamente se inspirou para escrever o seu Caminhos da Floresta.

A cabana de Heidegger em Todtnauberg, na Floresta Negra da Alemanha

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Também são muitos os escritores que procuraram inspiração na solidão das suas cabanas. O irlandês GEORGE BERNARD SHAW (1856-1950) foi um deles. Autor de Um Socialista Insociável, um dos livros que mais me impressionou na minha adolescência, Bernard Shaw foi galardoado com o Prémio Nobel da Literatura em 1926 e foi também um dos fundadores da prestigiada London School of Economics.

Bernard Shaw saindo de Londres, como ele chamava à sua cabana

A cabana de Shaw continua preservada nos nossos dias

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Outra famosa cabana é a da escritora VIRGÍNIA WOOLF (1882-1941), na qual esta destacada figura do Grupo de Bloomsbury (a que também pertenceram vultos como Clive Bell, Roger Fry, John Maynard Keynes) encontrava o recato indispensável para escrever obras como Mrs. Dalloway ou Orlando.

A cabana de Virginia Woolf, junto a um frondoso castanheiro

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O mais importante poeta galês DYLAN THOMAS (1914-1953) também tinha a sua pequena cabana para escrever, junto ao estuário do rio Taf, no País de Gales. O facto de o boémio Dylan Thomas ter morrido alcoolizado com apenas 39 anos de idade poderia fazer pensar numa vida longe da solidão de uma cabana. Mas foi aí que Thomas (a quem, já agora, o jovem Robert Zimmerman, autor de Blowin' in The Wind, pediu emprestado o apelido) encontrou provavelmente inspiração para o poema que celebra o seu trigésimo aniversário e que começa assim:
 
Era o meu trigésimo rumo ao céu 
Quando chegou aos meus ouvidos, vindo do porto 
E do bosque ao lado, 
E da praia empoçada de mexilhões 
E sacralizada pelas garças, 
O aceno da manhã.

A cabana de Dylan Thomas junto ao estuário do Taf

Dylan Thomas junto à cabana

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O senhor Samuel Langhorne Clemens, conhecido como MARK TWAIN (1835-1910) usou duas e não apenas uma cabana para escrever. É no estado de Nova Iorque que se situa a cabana em que escreveu o seus mais importantes livros: As Aventuras de Huckleberry Finn e As Aventuras de Tom Sawyer.

A cabana de Mark Twain, no estado de Nova Iorque

Twain à janela da cabana

Menos usada foi a cabana do Colorado, mas onde escreveu também alguns ensaios.

A cabana de Twain no Colorado

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Por fim, refira-se a que é talvez a mais emblemática de todas as cabanas, construída com as próprias mãos de HENRY DAVID THOREAU (1817-1862) no Lago Walden (no Massachussets) para aí viver em completo isolamento da sociedade e em total comunhão com a natureza. Foi num terreno junto a esse pequeno lago, cedido pelo seu amigo Ralph Waldo Emerson, que Thoreau quis viver em regime de auto-suficiência e de que resultou a singular obra autobiográfica Walden ou a Vida nos Bosques, na qual declara: 

Fui para os bosques viver de livre vontade, 
Para sugar todo o tutano da vida... 
Para aniquilar tudo o que não era vida, 
E para, quando morrer, não descobrir que não vivi!

Uma réplica da cabana original de Henry Thoreau

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Sem dúvida que, ficcionais ou não, outras distintas cabanas haverá. Poderia referir, por exemplo, a inspiradora Cabana Junto à Praia, entre as dunas e os canaviais, que José Cid parece nunca ter chegado a esclarecer onde fica exactamente. 



sexta-feira, 8 de julho de 2016

São tudo histórias

Regra geral, os grandes artistas — sejam eles pintores, músicos, poetas ou cineastas — impressionam-nos, surpreendem-nos ou deixam-nos a pensar com o conteúdo e a genialidade das suas obras. Raramente, por mais geniais que sejam, o conseguem fazer quando reflectem sobre a sua obra e a sua arte. Quando interrogados sobre isso acabam tantas vezes por dizer pouco mais do que banalidades desinteressantes, muitas vezes sem grande nexo. 

Mas aos artistas tudo isso se perdoa, pois são macacos de outros galhos. Na verdade, não é grave que grande parte dos artistas não consigam dizer grande coisa com interesse sobre a sua obra e a sua arte — a não ser, como é óbvio, quando nos esclarecem sobre os pormenores técnicos e o contexto artístico das suas criações. Quando tem algo verdadeiramente interessante para nos mostrar, a melhor maneira de o grande artista o fazer consiste em mostrá-lo nas suas obras. E estas devem falar por si. 

Vem isto a propósito da entrevista à grande artista Paula Rego, publicada há dias pela revista do Expresso. Mas diga-se que as perguntas da entrevistadora também não ajudam Paula Rego, como se pode confirmar na passagem seguinte:


Porque é que diz que tem medo? 
Porque tenho medo de tudo. E tenho medo de tudo desde pequenina. Tenho medo do escuro. 
Mas quando pinta não tem medo? 
Não, porque se ponho na tela já não me mete medo. Pode é meter medo aos outros... [risos]. Também pinto para fazer troça das pessoas, pessoas de quem a gente não gosta nada, como as professoras e isso... 
Ficou muito marcada pela sua professora lá de casa, a D. Violeta. 
Exatamente [sussurra], mas já morreu. Que o diabo seja surdo, cego e mudo! [bate três vezes na madeira]. 
Acredita no diabo, no bem e no mal, em deus...? 
Sim. Então não existem? São tudo histórias, eu acho, mas o mundo é feito de histórias. Por isso, está claro que o diabo e deus existem, cada um à sua maneira.
A Revista do Expresso de 2 de Julho de 2016

A entrevistadora pergunta por que razão Paula Rego tem medo e Paula Rego responde que tem medo porque... tem medo. Tem, de resto, medo de tudo. Como era de adivinhar, ficámos na mesma. Contudo, lendo melhor, Paula Rego tem medo de tudo... mas das telas não tem medo. Afinal não tem mesmo medo de tudo. Ok, até se percebe a ideia: tem medo de tudo de que geralmente se tem medo quando se é pequenino. Mas, nesse caso, qual o propósito de perguntar a Paula Rego se tem medo quando pinta? Será para indagar se as suas pinturas são a expressão do medo sentido? Será para apurar se a motivação criativa de Paula Rego é transformar — oh, estafado lugar-comum! — os seus medos em quadros? Nada disso é claro.

A pergunta mais curiosa é, contudo, a última. É curiosa porque a entrevistadora não se dá conta que a pergunta é falaciosa. A pergunta assenta numa falácia bem conhecida, a falácia da questão complexa. Imagine-se que Paula Rego, como tantas outras pessoas, acreditava no bem e no mal, mas não em Deus nem no Diabo. Que resposta deveria ela dar: que sim ou que não? 

Sem se dar conta, a entrevistadora parte do pressuposto filosófico tendencioso — e, por isso, enganador — que acreditar no bem e no mal equivale a acreditar em Deus e no Diabo. Isto é partir do princípio que a perspectiva dos mandamentos divinos acerca da moral é consensual. Mas não só não é consensual como nem sequer é partilhada pela maior parte daqueles que reflectem sobre essas coisas. Será que os ateus, por exemplo, não acreditam no bem e no mal?

Ainda assim, a resposta de Paula Rego não deixa de ser desconcertante: acha que o bem e o mal, Deus e o Diabo são tudo histórias. Por isso mesmo existem, diz ela. Como as pedras, os montes e as estrelas, tudo são histórias.

Há quem concorde que no princípio era o Verbo — ou o Logos —, mas Paula Rego acha, além disso, que tudo é Verbo.

Seja como for, Paula Rego é uma mulher divertida e uma grande pintora. E o resto são histórias.


domingo, 3 de julho de 2016

Gales dá música

Muitos portugueses têm, nesta altura, os olhos postos no País de Gales. Bom, não tanto no país em si, mas antes na sua equipa de futebol. O futebol galês talvez tenha sido uma das mais inesperadas surpresas do Campeonato Europeu de Futebol, que está a decorrer em França. Mas vale a pena aproveitar a embalagem e descobrir também algumas das melhores surpresas musicais de Gales. Destaco aqui três dos mais sonantes músicos galeses da actualidade.

Karl Jenkins foi um dos mais importantes membros dos Soft Machine, o grupo que combinava o rock progressivo com o jazz de fusão, criado por Robert Wyatt e Kevin Ayers, entre outros, no final dos anos sessenta do século XX. Foi Jenkins que liderou os Soft Machine após a saída destes, tocando saxofone, oboé, teclados e sintetizadores. Depois de abandonar os Soft Machine, Jenkins ganhou a vida a compor música para filmes publicitários (da Pepsi e da Levi's, por exemplo), passando entretanto a compor obras de maior fôlego para orquestra e voz, principalmente polifonias corais. A sua longa canção Adiemus: Songs of Sanctuary (uma mistura de música clássica com música moderna e world music, e de que confesso não ser grande apreciador), composta em colaboração com Mike Ratledge, outro dos antigos membros dos Soft Machine, foi um enorme sucesso. Mais recentemente compôs um Requiem e outras obras corais religiosas, de que destaco a missa The Armed Man, talvez a sua melhor obra. O Agnus Dei que aqui partilho faz parte dessa missa. Vários intérpretes de renome, como o barítono Bryn Terfel (também ele galês) e a soprano neozelandesa Kiri Te Kanawa, têm dado a sua voz a obras de Jenkins (em gravações para editoras como a Deutsche Grammophon, a EMI ou a Warner Classics). Jenkins tem também participado em discos de Mike Oldfield.



Outro nome de primeiro plano com quem Jenkins tem colaborado é a harpista e compositora Catrin Finch, sua compatriota. Catrin Finch também aborda diferentes tipos de música, como o jazz e o folk. Mas é sobretudo como harpista que o seu nome se tem imposto mundialmente. Partilho aqui a sua excelente interpretação em harpa da Aria inicial das Variações Goldberg, de J. S. Bach. 


Para terminar, John Cale, um dos fundadores dos seminais Velvet Underground, formados em Nova Iorque com a benção do inevitável Andy Warhol. Mas Cale foi musicalmente mais do que isso, com uma carreira a solo de que sobressai um dos melhores discos da história do rock alternativo experimental: Music For a New Society (1982). A quantidade de músicos de primeiríssimo plano com que Cale colaborou é impressionante, continuando a ser um dos mais marcantes autores de música popular moderna. A canção aqui partilhada, (I Keep a) Close Watch faz originalmente parte do álbum Music For a New Society


Se Gales tiver tão bons jogadores de futebol como músicos, é caso para Portugal temer o seu adversário do jogo das meias-finais. Estão avisados!

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Igualdade económica e alienação

O mais recente livro de Harry Frankfurt, Sobre a Desigualdade, acabou de ser publicado entre nós, na colecção Filosofia Aberta - Política, da Gradiva. Um livro que, apesar de muito curto, dá muito que pensar. Aqui fica uma pequena amostra.
Como objecção ao igualitarismo económico argumenta-se muitas vezes que há um conflito perigoso entre igualdade e liberdade. O argumento apoia-se na suposição de que se as pessoas fossem deixadas livremente entregues a si próprias, uma tendência para as desigualdades de rendimento e de riqueza se iria inevitavelmente desenvolver. Desta suposição infere-se que uma distribuição igualitária do dinheiro só pode ser alcançada e mantida à custa da repressão de liberdades indispensáveis ao desenvolvimento dessa tendência indesejada.
Seja qual for o mérito deste argumento acerca da relação entre liberdade e igualdade, o igualitarismo económico gera outro conflito mais fundamental. Na medida em que as pessoas estão preocupadas com a igualdade económica, sob o pressuposto falso de que é um bem moralmente importante, a sua predisposição para se sentirem satisfeitas com um determinado nível de rendimento ou riqueza está longe de ser norteada pelos seus mais distintivos interesses e ambições pessoais. Em vez disso, é guiada apenas pela quantidade de dinheiro que os outros eventualmente tenham.
Nesse sentido, o igualitarismo económico dissuade as pessoas de calcularem as suas carências monetárias à luz das suas circunstâncias e necessidades pessoais. Em vez disso, encoraja-as a aspirarem, de forma enganadora, a um nível de riqueza medido por um cálculo em que – esquecendo a sua situação monetária relativa – as características específicas das suas próprias vidas não têm qualquer peso.
No entanto, certamente que o montante disponível para outras pessoas não tem directamente nada que ver com aquilo que é necessário para o tipo de vida que, o mais sensata e apropriadamente, uma pessoa procuraria para si mesma. Assim, as preocupações com o alegado valor inerente à igualdade económica tendem a afastar uma pessoa de tentar descobrir – a partir da experiência e das condições da sua própria vida – o que realmente a preocupa, o que verdadeiramente deseja ou precisa e o que a irá de facto satisfazer.
Ou seja, uma preocupação de uma pessoa com a condição dos outros interfere com a mais básica  função de que mais decisivamente depende a selecção inteligente de objectivos monetários para si mesma. Isso afasta a pessoa da compreensão que verdadeiramente ela própria necessita para satisfazer, de facto, as suas mais autênticas necessidades, interesses e ambições. Por outras palavras, dar uma importância desmesurada à igualdade económica é perigoso por ser alienante. Separa uma pessoa da sua própria realidade individual e leva-o a centrar a atenção em desejos e necessidades que não são tão autenticamente seus.
Harry Frankfurt no Daily Show com Jon Stewart