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sexta-feira, 18 de novembro de 2016

O mundo é uma narrativa divina?

E Deus disse: haja luz; e houve luz. E Deus chamou à luz dia; e às trevas chamou noite.                         
                           
                                                                                                                             Génesis, 1: 3-4

No princípio era o verbo, e o verbo estava com Deus, e Deus era o verbo. Este no princípio estava com Deus. Todas as coisas existiam por ação dele e sem ele existiu nem uma só coisa que existiu. Nele estava a vida e a vida era a luz dos homens. E a luz brilha na escuridão e a escuridão não dominou a luz.
                                                                                                                                            João, 1: 1-5


Como começa por nos explicar João no seu evangelho, foi com palavras (verbo) que tudo foi criado: a luz, o dia, as trevas, a noite e tudo o mais que existe no mundo.
Como surgiu e o que fez surgir a luz? O Génesis dá a resposta: foram as palavras criadoras “haja luz”. E como se explica que dia e luz sejam o mesmo? Mais uma vez, lemos no Génesis, foi Deus — que é verbo — ter chamado dia à luz.
Assim, tudo o que existe passou a existir graças à ação da palavra e o mundo é literalmente feito com palavras. Por isso lemos que “Deus disse” e “Deus chamou”, em vez de “Deus pensou”, “Deus construiu” ou sequer “Deus fez”. O próprio criador, adverte João, era o verbo, a palavra criadora.
A palavra dita — não o pensamento, nem a imaginação nem sequer a vontade — é, pois, a razão de ser de tudo. Porque tudo vem de Deus e Deus é verbo e o verbo é o logos. E sem a palavra fundadora, nada chega a existir. Razão e palavra (ou verbo) são, afinal, a mesma coisa. Talvez por isso seja indiferente traduzir o termo original grego — logos — da mais antiga versão da  Bíblia por razão ou por palavra (ou verbo).
João sugere, deste modo, que o ímpeto gerador de tudo quanto é real se deve ao logos e não, como muitos têm defendido, à procura da perfeição nem à satisfação do desejo, e muito menos à necessidade ou à vontade transformadora manifestas na práxis (prática) e na téchnê (habilidade). Neste sentido, não apenas “razão” e “palavra”, mas também “realidade” significam o mesmo, o que parece concordar com o que alguns espíritos aparentemente obscuros, como Heraclito e Hegel, têm afirmado: tudo é logos, sustenta o obscuro filósofo pré-socrático; e tudo o que é real é manifestação divina da Razão Absoluta, acrescenta por sua vez o seu distante, e igualmente obscuro, discípulo alemão. Para muitos, isto tem a vantagem de preservar o mistério divino — e, desse modo, a inexplicável grandeza do criador, que é verbo — que consiste em compreender como podem as palavras “haja luz”, sem mais, gerar luz. Será que o mundo mais não é, afinal, do que uma narrativa divina, uma criação literária de Deus?
Os adeptos da tese de que a verdade não passa de uma narrativa poderiam até socorrer-se da teoria dos actos ilocutórios de J. L. Austin, exposta em Como Fazer Mundos com Palavras (publicado postumamente em 1962). Este filósofo da linguagem comum explicou aí como se podem fazer coisas com palavras. Faz todo o sentido perguntarmos o que, além de produzir sons articulados, está uma pessoa a fazer quando fala. Sem dúvida que essa pessoa pode estar a fazer coisas diferentes: pode estar a dar uma informação (sobre a hora da reunião de amanhã) ou a fazer uma promessa (prometendo ir à reunião); a dar uma ordem (é o juiz que dá ordem de prisão) ou a estabelecer algo (declarar um dia como feriado nacional ou baptizar alguém, dando-lhe um nome). Tudo isto é fazer coisas diferentes, usando apenas palavras. Com elas se proíbe e se insulta; se ajuda e se destrói; se condena e se liberta alguém; se passa de solteiro a casado e de estudante a doutor. Alguém que usa as palavras para difamar uma pessoa está a fazer algo diferente daquele que usa palavras para a consolar. Assim, tal como realizamos diferentes ações com as mãos — cumprimentar alguém, disparar uma arma, coçar a cabeça, etc. —, também realizamos diferentes ações com palavras.
Não custa, pois, admitir a possibilidade de alguém com autoridade suficiente ter determinado que algo é censurável declarando apenas “Isto é mau” ou “Não deves fazer isso” ou “Eu não aprovo isso”. E não só no Êxodo (20: 1-17) Moisés procura transmitir isso ao seu povo — “Não matarás”, “Honrarás pai e mãe”, etc. — como é reafirmado nos evangelhos pela voz do verbo divino incarnado, que Jesus diz ser. A ideia de que a distinção entre bem e mal resulta da palavra de Deus, de que a moral se funda nos mandamentos divinos, é demasiado popular para soar estranha. Pode ser uma ideia errada, mas não é inconcebível.
Todavia, a ideia de que não apenas a moral mas tudo quanto existe é feito de palavras, exige um falante com um poder da palavra inaudito. Ainda que se trate de palavras divinas, a realidade parece incluir muito mais do que a teoria dos actos de fala de Austin pode abarcar. O crente no mundo como mera narrativa divina e que não se satisfaz totalmente com a ideia de que os mistérios de Deus são insondáveis, precisa talvez de uma super-teoria dos actos de fala, que inclua actos de fala divinos.
Apesar da grandeza e criatividade de muitas obras de arte literárias — como é, para muitos, o caso da Bíblia — talvez o mundo seja algo mais do que literatura.
Sem dúvida que se fazem coisas com palavras. Mas não se vê bem como consegue Deus escrever a sua narrativa sem usar caneta. Nem como consegue fazer canetas só com palavras. 

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