De acordo com o jornal Público, as mudanças curriculares, cuja proposta está, no caso da Filosofia, a ser levada a cabo pela Associação de Professores de Filosofia (APF), visa "uma melhor gestão curricular" e procura, por isso, elencar "as aprendizagens essenciais" da disciplina.
Em suma, trata-se de ir ao que é realmente central, tornando isso o mais claro possível. A finalidade é, portanto, evitar que se aprenda à pressa e apenas pela rama uma quantidade enorme de matérias, que podem até não ser as mais estruturantes e significativas.
A ideia de reduzir o elenco de matérias é muito bem vinda, pois a verdadeira discussão em sala de aula dos problemas filosóficos e das principais respostas a esses problemas exige tempo. Este aspeto fundamental da aprendizagem filosófica tem sido contrariado por programas extensos, quase enciclopédicos, que frequentemente fazem da disciplina uma espécie de coleção de ideias que os alunos se limitam a decorar e a repetir, esvaziando a disciplina da sua verdadeira natureza filosófica. E que não se culpe os professores, pois eles não fazem milagres, até porque não podem deixar de cumprir o programa.
Por sua vez, é imperioso não apenas identificar os conteúdos centrais mas também fazê-lo da forma mais clara para todos, até porque se trata de conteúdos sujeitos a avaliação externa e não deve haver ambiguidades quanto ao que é suposto ser avaliado.
Dado que o objetivo aqui é selecionar e reformular o essencial do que o programa em vigor já contempla, é de esperar que as divergências sejam meramente pontuais. Não vale a pena esconder que diferentes perspetivas filosóficas e metodológicas são possíveis. Mas isso é um problema maior quando se parte do zero e quando se tem em vista um elenco tendencialmente maximalista. Desta vez, estamos perante a situação inversa: parte-se de um programa já assimilado por todos e do qual há apenas que selecionar e clarificar o mais importante, de acordo com a longa tradição filosófica que se mantém viva até aos nossos dias. Creio também que os mesmos conteúdos admitem, sem conflitos de maior, diferentes abordagens metodológicas, as quais devem ser da exclusiva responsabilidade de cada professor.
Em todo o caso, o secretário de estado teve o cuidado de esclarecer, como se lê no Público, que "convidou as associações de professores a estabelecerem as parecerias que considerem 'relevantes', o que poderá passar pelas sociedades científicas". Posto isto, não acredito que a APF não venha a convidar a SPF para dar também o seu contributo, caso ainda o não tenha feito.
Como é natural, ninguém pediu o meu contributo, mas tomo a liberdade de deixar aqui a minha opinião sobre o que poderia ser um renovado programa. Bem vistas as coisas, como muitos outros professores de filosofia, sou parte interessada e não me parece boa ideia silenciar os meus legítimos interesses.
A minha proposta procura preservar os aspetos positivos do programa actual, a saber: a) incidir nas principais disciplinas filosóficas tradicionais; b) partir dos problemas em vez dos autores; c) manter conteúdos abertos, de modo a que cada professor possa, razoavelmente, imprimir o seu cunho pessoal, e porque nem tudo precisa de estar sujeito a avaliação externa.
Mas procura também evitar os seus aspetos menos positivos, a saber: a) as disciplinas filosóficas em causa não serem identificadas de forma clara, como é habitual fazer-se; b) os problemas filosóficos não serem explicitamente enunciados ou formulados, prestando-se a confusões conceptuais; c) incluir conteúdos de interesse meramente histórico e de menor relevância filosófica, à luz da generalidade da bibliografia filosófica disponível; d) o seu carácter frequentemente vago e prolixo; e) opções didáctica e cientificamente injustificadas; f) bibliografia inadequada para o nível de ensino e a faixa etária dos alunos do secundário; g) a incongruente, em termos filosóficos, proposta de gestão dos conteúdos.
Os quadros seguintes (clicar em cima para ampliar) apresentam lado a lado os conteúdos do programa em vigor e a minha proposta, de modo a que se perceba melhor as opções feitas. Na gestão das unidades temáticas conto apenas com aulas de 50 minutos, dado que é essa a duração das aulas em muitas escolas (nesses casos, a Filosofia dispõe frequentemente de apenas 150 minutos semanais).
10.º Ano
Até aqui, há a salientar a clara divisão das unidades programáticas em função dos problemas e disciplinas filosóficas tradicionais, o que, só por si, já é mais esclarecedor e orienta melhor os próprios alunos, a quem já se explicou na unidade inicial quais as principais disciplinas da filosofia. A parte da definição da acção, ou da chamada "rede conceptual da acção" também é eliminada, pois a abordagem proposta no actual programa é demasiado esquemática, sem prever qualquer discussão filosófica. Sem dúvida que a filosofia da acção é campo de importantes discussões filosóficas, mas isso exigiria outros aprofundamentos, que não constam do programa e que consumiriam mais tempo.
Como se pode ver aqui, deixa de haver filosofia da religião e estética no 10.º ano. Qualquer professor sabe que o tempo disponível não é suficiente para lecionar todos os conteúdos previstos para o 10.º, que tem muito mais conteúdos do que o do 11.º ano. Os conteúdos anteriores são mais do que suficientes para nos ocupar o ano inteiro.
11.º Ano
A novidade aqui é o desaparecimento da chamada "lógica aristotélica". Será esta a mudança que mais adaptações exigirá da parte de muitos professores. Mas aqui as razões são de carácter científico — dêem-se as voltas que se derem, não é simplesmente verdade que a lógica aristotélica e a lógica proposicional clássica constituam diferentes paradigmas, dado que uma teoria lógica de modo algum é alternativa à outra. Mesmo em termos meramente instrumentais, não se justifica ensinar a lógica aristotélica em detrimento da lógica proposicional clássica. Além disso, por muito estranho que possa parecer a muitos, os rudimentos da lógica proposicional clássica não são, de todo em todo, mais difíceis de apresentar nem de aprender. No fundo, a minha proposta é simplesmente ensinar as noções elementares de lógica, que possam ser realmente úteis na discussão e clarificação de uma boa parte das teses filosóficas. Só não incluí o estudo da lógica no início do 10.º ano, como seria mais adequado, porque imagino haver demasiada resistência da parte dos professores a isso. Acho essa resistência injustificada, mas não podemos deixar de ter em conta a realidade.
Na parte da ciência, não dá para trabalhar mais do que um problema e o que parece mais óbvio lecionar é o do método científico. De resto, no programa actual os problemas do método, da racionalidade e da objectividade (e ainda um arremedo do problema da demarcação entre senso comum e ciência) estão algo embrulhados, o que tem levantado dificuldades didácticas não desprezíveis.
Outra novidade é aparecerem no 11.º ano, e sem opções, as questões de Deus e da arte. Com o que se elimina na lógica e argumentação (sim, fica mais curta, pois deixaria de se lecionar os temas de carácter essencialmente histórico sobre a relação entre filosofia, retórica e democracia, além de a lógica propriamente dita ficar mais curta) e também o que se elimina na filosofia da ciência, dá para tratar um problema central da filosofia da religião e outro problema central da estética e filosofia da arte. Recorde-se que o actual programa do 11.º ano já é mais curto do que o do 10.º.
E terminaria com um tema completamente livre, escolhido pelo professor ou pelo professor e os alunos ou pelos grupos disciplinares de cada escola.
Esta minha proposta poderia ser mais detalhada e tenho ideias sobre isso. Poderia ainda falar sobre a bibliografia recomendada pelo programa ou até das sintomáticas considerações iniciais sobre a justificação do ensino da filosofia. Mas o que aqui deixo já é suficiente para dar uma boa ideia do que defendo. Já é suficiente para suscitar eventuais críticas dos leitores. Espero bem que existam e aguardo por elas com toda a abertura.
Caro colega Aires Almeida,
ResponderEliminarObrigada pelo excelente trabalho.
Concordo inteiramente consigo. As alterações que propõe são muitíssimo oportunas, pois realmente o programa, além do excesso de conteúdos,está muito desorganizado.
Quanto à eliminação da lógica aristotélica acho muito pertinente. Eu sou professora de filosofia há cerca de 30 anos e nunca a lecionei. Quanto à resistência dos professores, penso que tem razão, mas há tanta gente competente para dar formação na área da Lógica Proposicional Clássica que, se as pessoas tiverem vontade para sair da sua "zona de conforto", facilmente se atualizarão. Entreguem a formação a quem é competente e não a quem se quer promover nos vários Centros de Formação de Professores (salvo raras exceções).
Apesar das resistências de que fala, parece-me muito mais adequada a lecionação de todos os conteúdos da lógica e da argumentação no 10º ano, pelas razões que o Aires muito bem elenca. Até porque no atual programa de matemática do 10º ano são abordadosvários conteúdos de Lógica proposicional e seria muito mais produtivo para os alunos que eles fossem também tratados na filosofia do 10º ano. Dirão que os alunos das humanidades não têm matemática, é verdade, mas a minha experiência diz-me que também estes alunos não revelam dificuldades de maior na lógica proposicional.Além de que, como refere o Aires, são apenas lecionadas questões básicas, embora fundamentais.
Obrigado pelo depoimento, colega Sameiro Paredes. A avaliar pela posição e vários colegas que têm manifestado a sua opinião, talvez eu esteja enganado acerca da reacção dos professores à mudança da lógica para o início do 10º ano. Fico feliz se assim for.
ResponderEliminarEntretanto, acho que preciso de escrever outro texto a clarificar melhor alguns aspectos do que propus.
http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/8493/1/ulfpie043382_tm.pdf (ver em especial a secção 4). Discuto a aparente irrelevância pedagógica pressuposta pela opção programática entre leccionar ambas as lógicas. A conclusão é, no essencial, concordante com a posição do Aires: acabar com a opção, leccionando-se só lógica proposicional, e no 10.º ano, pois é a lógica que serve melhor os pressupostos mais gerais do Programa.
ResponderEliminarRicardo
Caro Ricardo, fui ler e comecei pelo princípio. Terminei mesmo agora. O que me ocorre depois da leitura, e acerca da questão aqui referida, sou tentado a escrever QED no fim.
ResponderEliminarAchei particularmente esclarecedora a argumentação favor da ideia de que está mais de acordo com o próprio programa leccionar a lógica proposicional do que a lógica aristotélica, a qual se afasta de alguns dos seus pressupostos fundamentais. Muito bem visto. Posso partilhar a sua tese (ou incluir uma ligação para ela)?
Olá Aires.
EliminarObrigado. Deverá ter sido a segunda pessoa a ler o meu relatório. É claro que pode partilhá-lo. Especialmente neste momento talvez seja útil para a discussão do Programa no que toca à parte da lógica.
Ricardo
Caro colega Aires Almeida,
ResponderEliminarObrigado pelo seu esforço, dedicação e excelência do seu trabalho.
Concordo inteiramente consigo. As alterações que propõe são muitíssimo oportunas.
Quanto à eliminação da lógica aristotélica, é uma ideia excelente. Não faz qualquer sentido esse tema.