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sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Agosto azul... com tons de amarelo torrado

Aproveitei este final do mês de Agosto para, em boa companhia, dar mais um volta pelo quintal aqui ao pé: a ponta de João d'Arens, que se ergue entre a Praia do Alemão e a Prainha.


Por várias vezes pensei que nem a mais completa descrição daquele lugar seria capaz de captar tão caprichosa beleza e que Oscar Wilde devia estar equivocado ao escrever que a natureza imita a literatura em vez de a literatura imitar a natureza.

Mas, pensando melhor, talvez não seja mesmo fácil distinguir exactamente o que ali era pura natureza do que seria efeito literário. Talvez o ambiente descrito em Agosto Azul estivesse discretamente a orientar o meu olhar e fixar a minha atenção.

Fiquei intrigado e, ao regressar a casa, fui reler Agosto Azul, originalmente publicado no ano de 1904, por Teixeira Gomes, que viria a ser presidente da república de Portugal. Deixo aqui um excerto do livro, cuja acção — com o inevitável picante do escritor algarvio — se passa precisamente no mesmo lugar. E junto algumas fotos tiradas durante a caminhada.

   
    — Se houvesse aqui perto alguma praia com sombra, íamos para lá esperar o pôr do Sol... — digo eu já insofrido.
    — Passados Os Três Irmãos de Alvor — são três leixões agudos que avistamos cerce — na Ponta de João de Ourém há umas praiazinhas, mas não valem nada...; só na baixa-mar é que ficam a descoberto...
     — Vamos lá já...
    — A Ponta de João de Ourém é um montão de rochas a crescer pelo mar dentro e visível em toda a linha da costa desde a ponta do Altar até à ponta da Piedade.
   Rochedos amontoados brutamente dando um perfil tumultuoso e áspero, com luzernas de céu e mar a resplandecer pelos vãos dos penedos sobrepostos.
    Ao pé, esses penedos separam-se em labirinto de leixões semeados no mar, a esmo, levando por sinuosos canais sombreados aos pequenos refúgios da costa. As rochas levantam-se desigualmente: algumas afloram ou assomam os tenebrosos cabeços vincados por paralelas de gumes, à mais leve ondulação do mar; outros abrem-se em arcos franjados de algas verdes ou aguçam-se em pontas carcomidas; finalmente, dois ou três muito altos e cilíndricos erguem-se da água transparente com a solidez e o arrojo de torres fortificadas, enegrecidas e húmidas até onde lhes bate a água, mas os remates, brunidos pelo vento e amarelecidos ao sol, tão secos e lisos como se fosse marfim.
   O bote acolhe-se ao umbroso remanso de uma gruta baixa, donde nós alcançamos terra saltando, descalços, ao lume de água sobre cachopos escorregadios.
   Achamos praia de areia seca mas quase toda no perímetro dum fojo imenso cujo incessante esboroamento tornaria a nossa demora, ali, arriscada.
    Resolvemos passar o resto da tarde dentro de água. [...]
    Ando nisto duas horas ou mais quando enxergo, em cima de uma larga pedra rasa e rente com o mar, um pescador de cana que se esforça inutilmente por tirar a linha da água. O corpo dobra-se-lhe em arco perfeito, tal é a violência com que forceja por soltar a linha, e cai, assim dobrado, de costas, quando subitamente o peixe que a prendia salta da água e lhe vem bater no peito. É um grandíssimo congro a descrever arabescos prateados por entre os membros do pescador que o tenta sujeitar com o peso do corpo. Mas o peixe viscoso coleia, enfurecido, resvalando pela carne nua e ambos ficam a escabujar sobre a rocha limosa.
    Com o meu auxílio doma-se o mostro e é então que eu reconheço a custo. na elegância da sua nudez de adolescente, o pescador, um garoto, grande traquinas, a quem por pedido dos pais eu diligenciaria debalde meter na escola de marinheiros. 
    Ia-me ele contando as peripécias da sua pesca, mas de repente pára e aponta para uma furna distante, visível pelas frinchas que a perspectiva das rochas abre ao acaso: dentro estão duas mulheres sentadas, dobrando os xales com jeito de quem se vai despir.
    O rapaz não as conhece e observa:
    — Devem ser do campo e pensam que ninguém as vê...; a apostar que se vão despir e que a gente as vê nuzinhas...
    — Deixa-as lá...
   Despem-se com efeito, entre risos que mal ouvimos. Ambas são trigueiras, conquanto mostrem nos braços uma alvura que os rostos não faziam suspeitar. Diferem consideravelmente na idade. A uma delas alteia-se a camisa no peito com exuberâncias de amojo e na outra cai em pregas pelo grácil corpinho abaixo. Riem; riem muito, a porfiar qual delas há-de primeiro despir a camisa. É a mais nova que se decide: mostra no torneado tronco dois meios limões agudos onde a outra põe logo os lábios; depois esta abre também a camisa, soltando os túmidos seios maduros que a outra apalpa. Recrudescem os risos...
   Mas esta cena dura apenas momentos porque elas logo enfiam as saias brancas pela cabeça, perscrutando medrosas com a vista, em redor, e, erguendo-se, desaparecem por detrás das rochas.
    Reparo no pescador; vejo-o de braços estendidos e as mãos abertas na atitude de quem pede silêncio, os olhos chamejantes e o sexo arrebitado: é o fauno púbere prestes a atirar-se à ninfa incauta que ele espreitou e quer violar...
  Volto adonde está o meu companheiro, a quem encontro ainda na mesma postura, chapinhando o tronco já desafogado e branco de cré.
     Embarcamos.
   O calor abateu com o reclinar do Sol que desaparece precisamente quando aproamos à barra.
    Como se extingue o braseiro no vasto disco de bronze amarelo assim se afogou o Sol em cinzas ao resvalar no polido oiro pálido do céu.
    
O passeio começa, ainda bem perto da Praia do Alemão

A ponta do Altar lá ao fundo, a nascente, depois da foz do Arade

Uma das várias furnas

Praia do Alemão e Praia do Vau à vista

Frota de pedra estacionada




Amarelo torrado


A caminho da Prainha

Fim 

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