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sábado, 17 de março de 2018

A vida é um sonho?

O número 33 da colecção Filosofia Aberta estará nas livrarias dentro de uma semana ou pouco mais. Aqui fica apenas parte de um dos 101 episódios (mais precisamente, o episódio 39) apresentados e comentados por Rescher.

O sonho de Calderón
  A ideia de que a vida inteira que consideramos estar a viver possa na realidade ser apenas um sonho tem origens que se perdem nas névoas impenetráveis da antiguidade. A ideia é sugerida na crença hindu de que este nosso mundo é maya, uma mera ilusão. E reaparece na alegoria da caverna de Platão, cujos habitantes das cavernas — nós, que habitamos este mundo — têm de dar-se conta de que aquilo de que têm experiência não é a realidade mas antes uma mera aparência — uma «ilusão sem sentido», um mundo de sombras. A ideia ganhou depois bastante força no século xvii, tendo muito destaque na temática da famosa peça A Vida é um Sonho (La vida es sueño) do poeta e dramaturgo espanhol Calderón de la Barca (1600-1681), que reflecte a experiência mental filosófica do Discurso do Método de Descartes.
    Temos aqui uma daquelas hipóteses filosóficas que, como a solidão solipsista, não pode ser refutada com provas empíricas mas que não consegue apesar disso produzir qualquer convicção cognitiva.
    […]
    O contraste entre a experiência autêntica e o sonho é em si perfeitamente apropriado, mas não pode ser trans­formado numa distinção entre a nossa experiência como um todo e algo inteiramente fora dela e para lá dela. O contraste entre como as coisas são e a sua aparência não é um contraste entre a aparência e a não-aparência, mas antes entre a aparência correcta e a incorrecta; ao fazer esse contraste, não saímos do domínio da aparência.
    Considere-se uma analogia. A distinção entre o discurso dotado de significado e uma algaraviada só pode ser feita no seio do domínio discursivo. Tentar aplicá-la para distin­guir entre o que é linguisticamente discutível e algo que esteja para lá destes limites comunicativos é um passo na direcção da incoerência e da ininteligibilidade. De modo semelhante, a ideia de dormir só faz sentido onde há uma multiplicidade de experiências em que estamos acordados para que o contraste exista. A ideia de que em toda a nos­sa experiência poderíamos estar a dormir não faz sentido porque derruba a ponte do seu próprio contraste entre a experiência de dormir e a de estar acordado.
    Poderá haver boas razões para ser céptico quanto ao que Bertrand Russell chamou o «nosso conhecimento do mundo exterior», mas a hipótese do sonho não é uma delas.

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