terça-feira, 19 de abril de 2016

meia-dúzia ao vivo

Do que conheço da música rock e afins, estes são talvez os melhores álbuns gravados ao vivo.

Em  minha opinião, os álbuns ao vivo não costumam ser grande coisa: quase sempre as gravações são feitas em piores condições do que os discos de estúdio, o que prejudica a qualidade sonora; o ruído do público é muitas vezes exagerado e até irritante (vejam-se as ridículas gravações ao vivo de concertos dos Beatles, em que a gritaria do público se sobrepõe à música); a execução deixa muitas vezes a desejar, pois os músicos não só deixam de contar com todo o tipo de recursos disponíveis em estúdio como não têm a oportunidade de repetir o que corre mal; raramente se encontram novidades nos discos ao vivo, que dificilmente passam de versões mais toscas do que já se conhece de outros discos; e poderia acrescentar outras razões de peso.

Mas também há casos em que os álbuns ao vivo conseguem acrescentar algo que não conseguimos encontrar num disco de estúdio: o improviso capaz de enriquecer as músicas que já conhecemos; a atmosfera festiva e de celebração que faz daquele momento um acontecimento único; a energia e autenticidade que por vezes se perde nas gravações de estúdio; a maneira como os músicos interagem musicalmente com o público; a apresentação de versões melhoradas de músicas já conhecidas ou mesmo de músicas novas; e poderia acrescentar outras razões. Os discos seguintes são os que, em minha opinião, melhor exemplificam estes aspectos.

Deep Purple, Made in Japan (1972)
Este é um dos melhores discos alguma vez gravado ao vivo e, quanto a mim, o melhor disco alguma vez gravado pelos, hoje em dia, algo subestimados Deep Purple. Tem um som fantástico, que quase nos permite "visualizar" o palco, e interpretações soberbas dos cinco membros do grupo: a canção de abertura, Highway Star, é mesmo melhor do que o original gravado em estúdio, sobretudo o memorável solo de guitarra, que soa mais inspirado e menos artificial do que o do original. E segue-se-lhe uma versão inesquecível de Child in Time que, só por si, justifica a sua inclusão nesta lista.

King Crimson, USA (1974)
Este disco marca a despedida da primeira e mais interessante fase dos King Crimson. O som dos King Crimson é aqui mais duro e agreste do que o habitual (mais notoriamente em Larks' Togues in Aspic e 21st Century Schizoid Man) mas isso não retira um pingo da subtileza instrumental que caracteriza a sua música. Em alguns casos, essa subtileza resulta do contraste entre uma certa rudeza e uma quase tímida serenidade. Exiles, por exemplo, tem aqui a melhor versão que lhes conheço, na voz quente e lírica de John Wetton. Mas há, além disso, o excelente Lament e sobretudo o introspectivo Starless.

Keith Jarrett, The Köln Concert (1975)
Um disco único, em vários aspectos. Em sentido literal, porque se trata do registo de um longo e solitário improviso musical a que Jarrett nunca mais voltou a ligar. Jarrett está a sós com o piano como se fossem apenas uma coisa. Não é bem um disco de jazz nem é fácil enquadrá-lo num género musical preciso; é algo musicalmente à parte, uma espécie de reflexão musical. E é, acima de tudo, um disco belíssimo, com música cativante. E pensar que Jarrett quase se recusou a tocar nessa noite de Janeiro de 75, porque o piano não era o que ele pediu: tinha, de resto, os graves muito fracos e os agudos demasiado pequenos, obrigando-o a tocar quase sempre nos médios. O que vale é que a jovem organizadora do concerto, com apenas 17 anos, conseguiu convencê-lo a tocar com um piano de segunda linha, usado apenas nos ensaios da Ópera de Colónia.


Tom Waits,Nighthawks at the Dinner(1975)
Dos três discos gravados ao vivo por Waits, este é o que mais soa a Waits, aquele em que mais facilmente o imaginamos a cantar para nós ao piano de um pequeno bar nocturno do que numa grande sala de concertos. Waits é daqueles músicos capazes de criar uma atmosfera própria que nenhuma gravação em estúdio permite captar totalmente, apenas deixando adivinhar. Este Nighthawks at the Dinner aproxima-nos disso: uma sala pequena numa qualquer viela urbana, boa conversa a introduzir cada canção e a magnética personalidade musical de Waits quase no nosso círculo de intimidade. O disco não inclui as mais emblemáticas canções de Waits, mas não deixa de ser uma excelente colecção de canções, com Waits no seu melhor.

Weather Report, 8:30 (1979)
Um som incrível para um disco ao vivo. Poderia ser um disco de estúdio, não fosse a sensação de espacialidade só ao alcance de uma excelente gravação ao vivo como esta. Nos temas mais suaves, como no sereníssimo A Remark You Made ou em In a Silent Way, não se perde sequer o mais pequeno detalhe do baixo de Pastorius, do sax de Shorter  ou dos teclados de Zawinul, que nos prendem do princípio ao fim. Por sua vez, temas que são autênticas bandeiras do jazz-rock dos Weather Report, como Birdland ou Black Market ganham uma força e uma envolvência quase hipnóticas que vão além dos originais de estúdio.

Talking Heads, The Name of This Band is... (1982)
Há quem considere Stop Making Sense, gravado dois anos depois deste, o melhor disco ao vivo dos Talking Heads. Stop Making Sense é acima de tudo um excelente filme (dirigido por Jonnathan Demme) de música ao vivo, talvez o melhor que há. Mas The Name of This Band Is Talking Heads surpreende em todos os aspectos como nenhum outro disco ao vivo que tenha ouvido. Nem vale a pena referir a sequência de grandes canções dos quatro primeiros discos (qual deles o melhor!) dos Talking Heads. Quando se está à espera de versões algo simplificadas das canções originais, fica-se surpreendido ao verificar que muitas delas resultam ainda mais ricas, frenéticas e vigorosas.

domingo, 10 de abril de 2016

Livre-arbítrio: uma útil e promissora ilusão?


Uma vez que a mente individual não pode ser inteiramente descrita por si mesma, ou por qualquer outro investigador separado, o «eu» — a famosa estrela convidada nos cenários da consciência — ela poderá continuar a acreditar arrebatadamente na sua independência e no livre-arbítrio. E essa é uma circunstância feliz do ponto de vista darwiniano. A confiança no livre-arbítrio é uma adaptação biológica. Sem ela, a mente, na melhor das hipóteses uma frágil e sombria janela para o mundo real, seria atormentada pelo fatalismo. À semelhança de um prisioneiro, condenado a permanecer toda a vida em solitária reclusão, privado de qualquer liberdade para explorar e à míngua de qualquer surpresa, a mente deteriorar-se-ia.
Então, o livre-arbítrio existe? Sim, se não existe enquanto verdadeira realidade, existe pelo menos no sentido operacional necessário para a sanidade, e, portanto, para a perpetuação da espécie humana. 
                  O Sentido da Vida Humana (Clube do Autor Editora), pp. 180-181
Este argumento de Edward O. Wilson é muito semelhante ao de Kant a favor da imortalidade da alma. Com uma diferença importante: este de Wilson visa estabelecer a inevitabilidade prática da crença no livre-arbítrio, ao passo que o de Kant visa estabelecer não tanto a inevitabilidade prática da crença na imortalidade da alma mas a da própria verdade dessa crença.

sábado, 2 de abril de 2016

Há sentimentos não sentidos?

Ponte Fantasma (Rio Arade)

A pergunta deste post é uma reformulação algo atrevida do título da conferência Há dores não sentidas? proferida por João Branquinho no colóquio O Que é a Consciência? que decorreu na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em Novembro do ano passado e que, graças às Edições Passante de Lbtavares, tive agora a oportunidade de ver (com um agradecimento ao João Carlos Silva pela partilha no FB).

É sempre muito estimulante ouvir João Branquinho porque, entre outras coisas importantes, nos obriga a pensar e a repensar melhor sobre algumas das nossas mais estáveis intuições filosóficas. Não tenho dúvidas de que o panorama filosófico nacional tem melhorado muito nos últimos vinte anos e que isso se deve principalmente ao trabalho, deliberadamente discreto mas eficaz, de João Branquinho — seja directamente, pelos resultados da sua própria investigação, seja indirectamente, pelos reflexos disso nos que com ele aprenderam e acabaram por enveredar também pela investigação filosófica ou mesmo pelo efeito que o seu ensino tem tido no apuramento da qualidade da divulgação filosófica no nosso país.

Na sua conferência, JB responde afirmativa e, talvez, surpreendentemente à pergunta colocada: sim, há dores não sentidas. Se não me perdi na argumentação (e é bem possível que me tenha perdido em algum passo, pois podem-me ter escapado algumas das várias subtilezas argumentativas), parece-me que a estratégia de JB é essencialmente negativa e indirecta, podendo ser grosso modo resumida num Modus Tollens:  

1) Se não há dores não sentidas (como dores), então a tese da luminosidade é verdadeira.
2) Mas a tese da luminosidade é falsa.
3) Logo, não é o caso que não haja dores não sentidas (como dores).

Relativamente à premissa (1), JB explicou com suficiente detalhe que há várias interpretações para a antecedente da condicional, acrescentando que, para o que lhe interessa, ela tanto pode ser lida epistemicamente como trivialmente. Esclareceu também o significado da consequente da premissa, de modo que a tese da luminosidade (introduzida por Williamson, mas aplicada aqui ao caso da dor) pode ser genericamente descrita como a perspectiva de que o mundo da consciência fenoménica é epistemicamente transparente para o sujeito. Neste caso, trata-se da ideia de que os estados dolorosos de um dado sujeito são epistemicamente transparentes para o sujeito em causa, sem que nada permaneça na obscuridade. A tese da luminosidade subdivide-se, neste caso, em duas subteses: a) se eu tenho agora uma dor, estou em condições de saber que tenho agora uma dor, e b) se não tenho agora uma dor, estou em condições de saber que não tenho agora uma dor.

A parte principal da estratégia de JB é precisamente mostrar que ambas as teses anteriores são falsas e que, portanto a tese da luminosidade é falsa, ou seja, trata-se de justificar o que é afirmado na premissa (2), de cuja verdade o argumento depende crucialmente, pois a condicional da premissa (1) é tacitamente aceite por ambos os lados da disputa. Nessa justificação, JB serve-se não só de argumentação estritamente filosófica (por exemplo, sobre a diferença entre o que ocorre no domínio da consciência fenoménica e a categorizarão envolvida na consciência reflexiva acerca daquela), mas também se apoia em informação empírica relevante, nomeadamente da neurobiologia (por exemplo, ter uma dor no braço que é sentida não como dor mas como outra coisa, nomeadamente uma irritação cutânea).

A conclusão, apesar de se seguir das premissas e de JB nos dar boas razões para pensarmos que elas são verdadeiras, não deixa de ser surpreendente para muitos de nós. Mas algo mais me deixou a pensar: será que a mesma estratégia seguida por JB se pode aplicar também a sentimentos, como a pena, o medo, o ciúme, a alegria ou a tristeza? Claro que JB não tinha isto em mente, mas foi para mim inevitável reformular a questão inicial, de modo a avaliar melhor o alcance dos argumentos apresentados. 

Num primeiro momento, pensei que a mesma estratégia não permitia concluir que há sentimentos não sentidos. Note-se que não está em causa que tenhamos certos sentimentos dos quais não nos damos conta quando os estamos a ter. Penso que isso não é sequer problemático, pois facilmente reconhecemos que podemos estar a sentir ciúme sem nos darmos conta disso. O que está em causa é se há sentimentos que nem sequer são sentidos: podemos estar tristes sem sentirmos a tristeza? Podemos estar com medo sem sentirmos o medo? Se há quem pense que é uma verdade necessária que não há dores não sentidas (a tese que, de resto, JB procura refutar), parece ainda mais plausível afirmar que é uma verdade necessária que não há sentimentos não sentidos. Facilmente somos tentados a pensar que é contraditório afirmar que há sentimentos não sentidos. 

Mas, pensando melhor, talvez a resposta de JB funcione igualmente (tenho de rever a conferência com mais atenção e de pensar melhor nisto tudo) se falarmos de sentimentos em vez de dores. Até porque se as sensações, como a sensação de dor, envolvem algo mais do que uma dada fenomenologia (envolvem elementos cognitivos ou algo próximo disso como, por exemplo, um foco de atenção), isso é ainda mais claro no caso dos sentimentos, cuja componente cognitiva plausivelmente chega a incluir atitudes proposicionais como crenças e desejos: é improvável que alguém sinta medo sem acreditar que corre perigo ou que está sob ameaça de alguém. Assim, se a tese da luminosidade é descartada com base na ideia de que saber que tenho agora uma dor envolve mais do que a mera consciência fenoménica da dor, o mesmo se aplica, por maioria de razão, ao caso dos sentimentos. Neste caso, posso até conceder que haja uma total transparência fenoménica sem que tal implique que, se estou agora a sentir medo, então estou em condições de saber agora isso. No caso dos sentimentos, a componente fenoménica é mais claramente apenas uma condição necessária mas não suficiente, sendo mesmo provável que diferentes sentimentos partilhem o mesmo tipo de fenomenologia: por exemplo, os sentimentos de euforia e de exultação talvez se distingam mais pela componente cognitiva envolvida do que pela sua fenomenologia. 

Já o poeta, esse grande fingidor, tinha dito que podemos sentir as dores que não temos. JB acrescenta que também podemos não sentir as dores que temos. E agora parece que até podemos não sentir os sentimentos que temos.

Estranho, agora que cheguei ao fim do post, fico com a sensação de que algo correu mal no meu raciocínio. Será?