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segunda-feira, 21 de março de 2016

Uma língua metafisicamente desorientada?

Ria Formosa, foto de Aires Almeida

Será que velha e persistente distinção aristotélica entre as diferentes categorias do ser, mais precisamente entre substância e qualidade, passou definitivamente à história? A avaliar pelo que se ouve e se lê nos órgãos de comunicação social portugueses, parece que sim. De acordo com uma longa tradição iniciada por Aristóteles, as qualidades podem ser predicadas das substâncias ao passo que as substâncias não podem ser predicadas de seja o que for. É nessa distinção metafísica que assenta a distinção linguística entre substantivos (para as substâncias) e adjectivos (para as qualidades). Mas quem ainda não ouviu ou leu frases como as seguintes?

1. Os populares sairam à rua em protesto contra o encerramento do centro de saúde.

2. Os alunos precisam de adquirir os instrumentos para uma correcta interpretação do real.

3. Há pessoas que dedicam toda a sua vida à descoberta do belo.

4. O que a testemunha afirmou é verdade.

Será descabido ficar incomodado com tão desleixado uso da língua portuguesa? O que os exemplos anteriores mostram é uma confusão básica entre substantivos e adjectivos. Os termos "popular", "real", "belo", que são adjectivos (qualidades que as substâncias podem ter), funcionam aqui como substantivos, ao passo que "verdade" é um substantivo, mas usado na frase (4) como adjectivo. Quer dizer, substantivam-se os adjectivos e transformam-se substantivos em adjectivos, o que é uma boa maneira de lançar a confusão.

Claro que uma certa maleabilidade da língua é algo desejável e, nestes casos, poderia haver até boas razões para isso. Só que não se vê quais são, a não ser o desejo dos respectivos falantes mostrarem que são criativos, dando assim ares de sofisticação intelectual (pena é ser-se tão previsivelmente criativo). Imagine-se alguém que diga simplesmente:

1'. As pessoas sairam (a população saiu) à rua em protesto contra o encerramento do centro de saúde.

2. Os alunos precisam de adquirir os instrumentos para uma correcta interpretação da realidade.

3. Há pessoas que dedicam toda a sua vida à descoberta da beleza.

4. O que a testemunha afirmou é verdadeiro.

Qual a desvantagem de falar assim? As vantagens são óbvias.

Há quem diga que a língua portuguesa não é suficientemente refinada para as subtilezas do discurso filosófico. Mas os exemplos anteriores não são culpa da língua portuguesa, pois esta permite, como se viu, exprimir as ideias pretendidas de forma simples e rigorosa. 

Se uma língua serve para descrever com o maior rigor possível o que há e como é isso, então é no mínimo desejável que ela não seja metafisicamente confusa. Só que, a avaliar pelos exemplos anteriores, os falantes da língua portuguesa parecem estar-se nas tintas para a metafísica (e nem vale a pena falar da substituição do substantivo feminino "beleza" pelo pomposo e machista "belo"). 

8 comentários:

  1. O autor dessas linhas ou está de brincadeira ou é insano. Não sabe nada de linguística básica nem se importou em fazer comparações com outras línguas. Uma lástima!

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    1. «O autor dessas linhas ou está de brincadeira ou é insano.»

      Porquê?

      «Não sabe nada de linguística básica»

      Porquê?

      «nem se importou em fazer comparações com outras línguas»

      Não há dois ou três exemplos das tais comparações?

      Há coisas que o autor do texto não fez e que, segundo Marcos Bagno, devia ter feito, mas o comentador Marcos Bagno deu-se ao trabalho de comentar disparates tão grandes sem precisar de justificar seja o que for.

      Assim, como vão as pessoas que lêem isto saber que Marcos Bagno tem razão nos seus comentários. Ah, já sei, porque é o fabuloso Marcos Bagno, que toda o mundo conhece e, por isso, Marcos Bagno não precisa de se justificar.

      «Uma lástima!»

      Exacto, uma lástima mesmo.

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    2. Desculpe, também achei o artigo ruim antes de ler quaisquer comentários. Comento aqui como anônimo para que você não possa retrucar com coisas como "o fabuloso Marcos Bagno" -- embora você também tente vagamente revestir seu discurso de alguma autoridade citando Aristóteles. Realmente não mostra um conhecimento linguístico básico. Apontando apenas alguns exemplos para não perder mais meu tempo:

      Em "O que a testemunha afirmou é verdade", verdade aparece como predicativo do sujeito, e não necessariamente tem caráter adjetivo, mas caráter nominal.

      Todas as línguas são capazes de expressar as coisas de que se pode falar. O que muda é apenas a forma de expressão, não a substância. O que uma língua pode deixar de dispor com relação a outra em termos de léxico ou gramática pode ser compensado por empréstimos, calques, neologismos, circunlóquios.

      Uma língua "serve" para alguma coisa? Caso sim, seu fim é a descrição mais rigorosa possível de um tema metafísico? Você acredita mesmo que a faculdade de linguagem se desenvolveu ao longo de milhões de anos de evolução para isso?

      A questão que você coloca é extremamente mal postulada, e é um desfavor não apenas no ensino linguístico mas também no sentido filosófico...

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    3. Este comentário foi removido pelo autor.

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    4. Bom, autoridade por autoridade, penso que é sempre melhor invocar Aristóteles, cujo trabalho todos conhecem, do que Marcos Bagno. Nem sempre os argumentos de autoridade são maus argumentos. Mas quando a autoridade invocada é Marcos Bagno, sem dúvida se trata de um argumento falacioso.

      É algo caricato e quase risível dizer que comenta como anónimo para que eu não possa dizer coisas como "o fabuloso Marcos Bagno". Mas adiante, que isso tem, afinal, pouco interesse. Para falar francamente, acho deveras irritantes comentários que não passam de mera fanfarronice intelectual.

      Se eu digo coisas erradas (e tantas são elas!) basta que me corrijam e que me digam porquê, que eu até fico agradecido.

      Quanto ao exemplo da testemunha, é sem dúvida o mais discutível dos que apresentei, pois a frase pode ser reformulada como "O que a testemunha afirmou é uma verdade", caso em que teria razão. Mas não é isso que lá está e que, em contextos comuns, equivaleria a "A afirmação testemunha é verdadeira", caso em que a palavra "verdade" da frase original está em vez do adjectivo "verdadeira" e não aparece como nome predicativo do sujeito.

      O próprio Bagno parece ter a noção de que há duas interpretações possíveis quando diz, algo incoerentemente, que "verdade aparece como predicativo do sujeito, e não necessariamente tem caráter adjetivo". Sublinho o operador modal "necessariamente". Mas insisto que em contextos comuns, tipicamente interpretamos a frase da maneira que sugeri.

      Quanto ao resto, fico na mesma. Interrogo-me apenas se terá a mesma noção que eu do que sejam questões metafísicas. A metafísica diz respeito à estrutura fundamental da realidade, como as coisas realmente são. Imagine-se uma linguagem desinteressada da realidade.

      E o que é uma questão "mal postulada"?

      Tenho toda a paciência para discutir séria e honestamente o que afirmo, mas não tenho para patéticos despiques de superioridade intelectual.

      Ainda assim, custa a acreditar como o Marcos Bagno gasta o seu tempo com alguém tão mal preparado como eu.

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  2. Achei interessante para lembrar que questões filosóficas podem ser formadas pela forma como se fala algo (a forma literal pode não corresponder aos fatos, pode até se desvincular deles ). Em termos práticos, não importa, pois o objetivo da língua é expor a ideia. Os exemplos são claramente entendidos e não induz a confusão metafísica algum no ouvinte mediano. Já o filósofo que se depara com aquelas afirmações, deve estar informado sobre como funciona a língua para não tirar conclusões sobre a realidade embasados só na estrutura da lingua.

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    1. Diz Nids que o objectivo da língua é expor a ideia. A ser assim (e não discordo de Nids), não restam dúvidas de que não fui capaz de expor a ideia que tinha em mente. Pelo menos Nids entendeu outra coisa diferente do que eu tinha em mente ao escrever aquelas linhas. Ao contrário do que Nids afirma, não tirei qualquer conclusão sobre a realidade embasado no funcionamento da língua. A minha ideia era precisamente a inversa: tirar conclusões acerca (de certos usos) da língua com base na realidade.

      Se a língua é uma ferramenta, é desejável que essa ferramenta seja o mais precisa e rigorosa possível, de modo a evitar eventuais confusões e a ser o mais eficaz na exposição das ideias (acerca da realidade) que se pretende transmitir. Parece não haver grandes dúvidas que algumas línguas são, em certos aspectos, mais rigorosas do que outras. Rigor e precisão que se avaliam pela maior ou menor capacidade de uma dada língua para expressar as subtilezas da realidade que visam descrever .

      O facto de as frases por mim citadas não induzirem qualquer confusão no ouvinte mediano é irrelevante e nem sequer era isso que estava em causa. O facto de muitas vezes conseguirmos pregar pregos com um alicate não mostra que o alicate seja a ferramenta mais adequada para pregar pregos.

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  3. De fato o texto acima não pretende concluir que a interpretação literal daqueles exemplos tenha algum significado na realidade. E concordo que a língua deve ser a mais precisa possível. Talvez não tenha sido claro: Só achei interessante e intrigante que aqueles exemplos, mesmo tendo erros de precisão quanto a representar a realidade se interpretados literalmente, não induz aos ouvintes medianos aqueles erros. Ou seja, frases com erros não transmitem erros, não confundem, o que parece contraditório. Uma possível explicação é que talvez a interpretação funcione mais na identificação da intenção do autor, pela ideia principal que o autor daquelas frases queira transmitir, do que pela forma. Pela ideia principal não abordar questões metafísicas, o ouvinte não absorve o erro metafísico. Interessante é que o ouvinte mediano identifica a ideia principal e não percebe ou negligencia automaticamente os erros derivados fora da ideia principal.

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