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segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Aristóteles, Ford e a ficção


Na passada sexta-feira, dia 20, o realizador António-Pedro Vasconcelos (APV) esteve na Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes como orador na XVI Conferência de Filosofia (organizada pelo grupo de filosofia da escola), no âmbito da qual proferiu uma interessante palestra sobre o que entende ser a natureza do cinema e da ficção em geral.

Segundo APV, Aristóteles ainda continua a ser quem, na sua obra Poética, melhor nos permite compreender a natureza representacional da ficção. Por sua vez, os filmes de John Ford são, na opinião de APV, os exemplos mais óbvios que a arte cinematográfica nos dá dessa natureza representacional (ou mimética). 

É certo que, na Poética, Aristóteles está a falar sobretudo das formas de arte mais importantes do seu tempo: a poesia e, em especial, a tragédia (tanto na poesia como no teatro). Mas, considera APV, o que este filósofo diz pode ser aplicado às mais diversas formas de ficção, mesmo às formas de arte ficcional que vieram a surgir muito mais tarde, como o cinema. Assim, uma passagem como a seguinte, pode perfeitamente ser aplicada à compreensão dos filmes de John Ford — que tudo indica nunca ter lido Aristóteles — e, em geral, à sétima arte:

Não é ofício de poeta narrar o que aconteceu; é antes o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verosimilhança e a necessidade. Com efeito, não diferem o historiador e o poeta por escreverem verso ou prosa [...] — diferem, sim, em que um diz as coisas que sucederam e o outro as que poderiam suceder. Por isso, a poesia é algo de mais filosófico e de mais sério do que a história, pois aquela refere principalmente o universal e esta o particular. Por "referir o universal" entendo eu atribuir a um indivíduo de determinada natureza pensamentos e acções que, por vínculo de necessidade e verosimilhança, convêm a tal natureza; e ao universal assim entendido visa a poesia, ainda que dê nomes às suas personagens [...]. 
Poética, 1451a-1451b

Como APV parece ter sugerido, onde Aristóteles fala de poesia poder-se-ia falar da arte cinematográfica. E a diferença entre a arte cinematográfica propriamente dita e o cinema documental corresponde à diferença apontada por Aristóteles entre poesia e história. Assim, a ideia que APV veio defender é que o cinema é uma arte ficcional e, portanto, representacional. Mas a representação não deve ser entendida como simples imitação do que ocorre na natureza, como o próprio Aristóteles sublinha.

Neste sentido, a perspectiva aristotélica sobre o cinema defendida por APV, admite os mais diversificados recursos narrativos, mas não acolhe com bons olhos a completa ausência de narrativa: como arte ficcional, o cinema deve ter algo para contar, ainda que o que está a ser contado nunca tenha acontecido realmente. O mais difícil, considera APV, é ter uma boa história e saber contá-la bem. Não basta, pois, ter uma boa história e não a saber contar, nem saber contar uma má história. E, claro, o que não parece caber na ficção é o nem sequer ter uma história para contar. 

Além do aspecto representacional da ficção, há ainda o aspecto emocional também destacado por Aristóteles. Assim, também para APV, a ficção, e o cinema em particular, não visam apenas a representação pela representação: esta deve dirigir-se às emoções das pessoas. APV defende que um bom filme visa levar o espectador à suspensão da descrença (suspender a crença de que se está perante uma situação ficcional) para o fazer experimentar as emoções promovidas pelo autor. 

Em suma, os bons filmes, como os de John Ford, caracterizam-se pelo seu conteúdo narrativo e pela sua capacidade de provocar certo tipo de emoções.

Foi muito bom ver um realizador de cinema experiente, como António-Pedro Vasconcelos, reflectir sobre estas questões, mesmo não sendo um filósofo profissional. Além disso, o cineasta soube fazer muitas e curiosas incursões pelas várias artes, conseguindo prender a atenção do auditório também com interessantes short stories que circulam no mundo da sétima arte.

Sala cheia

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Sábado com Janelas

Janelas Para a Filosofia está escrito de uma maneira clara e simples e pode ser compreendido por leitores que pouco ou nada saibam de filosofia. Está escrito de maneira simples mas não simplista, conseguindo um notável equilíbrio entre o rigor conceptual e a simplicidade requerida por uma obra destinada a leitores não especialistas.
É a opinião de Carlos Pires, expressa na sua recensão do meu livro e do Desidério, Janelas para a Filosofia, publicada na edição on-line do dia 19 de Fevereiro da revista semanal Sábado.


terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

O ex-punk platónico

Não sei se o alaudista ex-punk holandês Jozef van Wissen estudou filosofia da música. Seja como for, numa recente entrevista ao jornal Público — a propósito da sua passagem por Portugal para dar vários concertos — dá uma boa ideia do que é o platonismo musical. 

O platonismo musical é uma perspectiva acerca do tipo de coisa que as obras musicais são. Trata-se de uma perspectiva acerca da ontologia da música, de acordo com a qual as obras musicais são objectos abstractos, não tendo, portanto, uma existência espácio-temporal: as obras propriamente ditas não se encontram na partitura, nem na gravação em disco, nem na sala de concertos, nem sequer na mente do compositor. Uma obra musical é, de acordo com o platonismo radical (há outros tipos de platonismo), uma estrutura puramente sonora, eterna e incriada. Assim, uma dada obra musical é descoberta pelo "compositor", não criada, pois existe antes dele e continuará a existir para sempre. 

É, no fundo, a esta perspectiva — talvez a mais comum entre os filósofos da música, de que se destacam Peter Kivy e Julian Dodd — que van Wissen dá voz quando diz:

Toco tanto ao vivo que não preciso de praticar — antes pelo contrário. Em casa toco algum repertório clássico, só para ginasticar os dedos, mas as melodias que acabam nos meus discos apanhos-as do ar. 
Neste momento sinto que o ideal para uma composição é encontrar a melhor melodia possível. Não é fácil encontrar uma melodia que fique no ouvido de toda a gente. Isso é um presente divino. O que sinto é que sou uma parte de algo que canaliza as melodias que já existem.

Ele fala das melodias que acabam nos seus discos e não nas melodias que compõe ou que inventa, tornando mais clara esta ideia ao sublinhar que as apanha do ar, como algo que lhe foi oferecido, limitando-se a exemplificá-las espácio-temporalmente. Quer dizer, ele não cria, não inventa nem é verdadeiramente o autor dessas obras; apenas descobre e exemplifica estruturas puramente sonoras pré-existentes. Chama-se a isto platonismo musical extremo — ou também sonicismo puro.

Não tenho a certeza de que haja pressupostos filosóficos presentes na mera fruição musical. Mas eles são inevitáveis quando procuramos compreender a música.

Aqui fica uma gravação com van Wissen a canalizar para nós melodias que descobriu em nenhum lugar e que faz parte da banda sonora de um dos filmes do realizador Jim Jarmusch. Não creio que van Wissen seja um grande descobridor, mas esta melodia é, ainda assim, das melhores descobertas que lhe conheço.