sábado, 30 de novembro de 2013

David Hume: o cepticismo no seu melhor

Ao fazer uma limpeza num velho disco externo, encontrei mais uns quantos textos escritos para a comemoração do Dia Mundial da Filosofia. Deixo aqui o de 2006, sem qualquer alteração. Recordo-me que a ideia naquele ano foi cada professor do grupo escrever um texto de um página sobre um dos nossos filósofos preferidos, apresentando-o e justificando a escolha. Nesse ano escrevi dois textos. Este é sobre David Hume, cujas ideias sobre o conhecimento iremos estudar e discutir já no próximo período.

DAVID HUME
O CEPTICISMO NO SEU MELHOR


Ler David Hume é uma experiência intelectual desconcertante. Começa – num espírito bem socrático – por destruir muitas das nossas ideias e convicções mais básicas, para terminar – talvez pouco socraticamente – por devolver o que nos tinha tirado. Só que, uma vez recuperadas as nossas crenças iniciais, elas perderam, nas mãos de Hume, o seu valor facial primitivo: elas continuam a ser-nos caras, até porque não dispomos de alternativas melhores, mas a certeza nelas depositada ficou irremediavelmente arruinada. 
Um dos maiores representatntes do iluminismo escocês – nasceu em Edimburgo, em 1711, e aí veio a morrer em 1776 –, Hume defendia que «devemos acreditar apenas naquilo em que temos boas razões para acreditar». Mas em que teríamos nós boas razões para acreditar? Temos boas razões para acreditar que o Sol aquece? Que havemos de morrer um dia? Que Deus existe? Que há coisas realmente belas? Que a razão nos diz o que é certo e o que é errado? Que existe o mundo exterior? 
A resposta de Hume para todas estas perguntas é, insisto, desconcertante: nada nos permite ter a certeza em qualquer destas crenças. Acontece apenas que algumas delas são simplesmente inevitáveis, pois fazem parte do nosso instinto natural de sobrevivência e não conseguimos viver sem elas. Tudo o que podemos dizer é que há impressões dos sentidos e que, supostamente, estas seriam explicadas pela existência de objectos exteriores. Mas nada nos garante tal coisa. Também não podemos dizer que o Sol aquece, pois tudo o que realmente sabemos é que temos a impressão de ver o Sol e a sensação de calor. A conexão entre uma coisa e outra é algo que não observamos, pelo que tudo se resume ao hábito de associarmos essas impressões. Mas do facto de haver uma conjunção constante entre duas coisas não se segue que uma não possa existir sem a outra. Analogamente, também não se compreende, a não ser pelo hábito, por que razão dizemos que iremos morrer um dia, coisa que ninguém ainda observou. Claro que até agora todas as pessoas abaixo de uma certa idade morreram. Mas, a não ser que saibamos que a natureza é regular e uniforme, não podemos saber que nós também iremos morrer. Só que não podemos saber que a natureza é regular e uniforme a não ser porque vimos muitas vezes coisas como, por exemplo, todas as pessoas abaixo de uma certa idade morrerem. Ora, isto é andar aos círculos, pelo que a explicação não serve – este é o célebre problema da indução, pela primeira vez levantado por Hume. 
Além disso, também não há qualquer razão para acreditarmos que Deus existe; como não há qualquer razão para acreditarmos em milagres; como não temos boas razões para afirmar que a beleza está nas próprias coisas; como não se consegue explicar em que sentido poderá a moral fundar-se na razão em vez do sentimento. 
Perante tudo isto, poderíamos pensar que Hume é um céptico pessimista. Mas isso não é correcto. É ceptico, mas não é pessimista. O seu cepticismo é resgatado por uma espécie de senso-comum sofisticado: certas ideias são tão vivas que não podemos viver como se fossem simplesmente falsas. O que não garante que sejam verdadeiras. Por isso, não nos podemos deixar dormir no nosso sono dogmático – o próprio Kant confessou que foi despertado do seu sono dogmático pela leitura de Hume. 
A filosofia seria hoje irreconhecível sem Hume. Ele obrigou muitos filósofos, políticos, artistas, cientistas e até crentes religiosos a pensar melhor, a rever e a justificar cuidadosamente as suas ideias. A sua influência é enorme em praticamente todas as disciplinas filosóficas. Mas ainda assim, Hume não se esqueceu do que mais importa: «sê um filósofo, mas no meio de toda a tua filosofia, não deixes de ser um homem».

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Padres, revolucionários e lunáticos

Tropecei mesmo agora com o texto que escrevi para o Dia Mundial da Filosofia de 2008. Ainda me lembro bem da conversa que deu origem ao texto. E, de vez em quando, ainda me cruzo na rua com o colega de Matemática, há muito reformado, que teve essa conversa comigo.

Aqui fica o texto.


Nunca mais me esqueço do que, há muitos anos, um colega mais velho de Matemática, entretanto reformado, me disse na sala de professores. Além do seu cachimbo — nessa altura ainda se fumava nas escolas —, esse colega era conhecido por assumir frequentemente uma atitude intelectualmente provocadora e até politicamente incorrecta, como agora se diz. Estava, então, eu a lamentar-me baixinho pelo facto de tantas pessoas pensarem que os filósofos são aqueles que procuram saber tudo sobre coisa nenhuma quando o colega, que ainda mal conhecia, se virou para mim e disse: «olha lá, pá, ainda não cheguei a perceber se tu és dos padres, dos pseudo-revolucionários ou dos poetas lunáticos.»

Fiquei intrigado com o comentário dele e perguntei o que queria dizer com aquilo. «Ora, voltou ele à carga, todos os professores de Filosofia que conheci ou pareciam padres ou pseudo-revolucionários de esquerda ou tolinhos armados em poetas lunáticos.» Achei a generalização algo abusiva, mas quis saber como caracterizava ele cada um desses grupos. A resposta foi, mais ou menos, nestes termos: «os padres ensinam filosofia como se fosse catequese e têm aquele ar muito cinzentinho; os pseudo-revolucionários de esquerda não estão interessados em ensinar seja o que for, mas a levar a rapaziada a mandar bocas contra o sistema; os pseudo-poetas são aqueles que, sem paciência para raciocinar disciplinadamente, querem é liberdade para dizer a primeira parvoíce que lhes passe pela tola.»

Penso que o comentário do colega foi injusto, pois felizmente não se aplica a muitos professores de Filosofia. Mas, ainda assim, não deixou de me fazer pensar. A verdade é que ele estava a tentar denunciar aquilo em que a filosofia não se pode tornar e que, a ser assim, a tornaria dispensável. O colega queria, no fundo, protestar contra a ideia de que a filosofia é um conjunto de preceitos que se transmitem dogmaticamente (os padres); ou um gesto de pura contestação, seja contra o que for (os revolucionários); ou ainda um pretexto para cada um exprimir o que lhe vai na alma, seja lá isso o que for (os poetas). Sem desprimor para os verdadeiros padres, revolucionários e poetas.

Ora bem, esta ideia não é totalmente uma invenção dele. A verdade é que a tentação para muitos de nós santificarmos ou idolatrarmos os nossos filósofos preferidos pode fazer-nos deslizar facilmente do campo do exercício crítico que caracteriza a filosofia para o campo da catequese quase religiosa. Assim como é fácil ser impaciente e criticar sem antes ter compreendido, ou confundir a ausência de dogmas com a livre expressão de sentimentos e o reino do vale tudo. A filosofia não é religião, não é política e não é poesia. A filosofia ocupa-se dos seus próprios problemas, apesar de alguns deles serem acerca da religião, da política e da poesia. E ainda bem para a filosofia, para a política e para a poesia que é assim.

É certo que estes domínios por vezes se contaminam, tal como se pode misturar água com café. Mas, tal como a água não passa a ser café e o café não passa a ser água, também a filosofia não passa a ser poesia nem a poesia filosofia. E também não é de estranhar que a melhor filosofia se manifeste na discussão directa com os filósofos, pois afinal são eles os profissionais do ofício, os que mais treinados estão para formular correctamente e discutir criticamente os problemas filosóficos.

A filosofia não precisa de se tornar literatura, poesia ou outra coisa qualquer para ter dignidade. Só quem não vê valor intrínseco na filosofia precisa de o ir buscar a outro lado. E a literatura e a poesia também não precisam da filosofia para nos deleitarem. Seria tudo muito mais pobre e desinteressante se não fosse assim.                     

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Um dia mundial da filosofia musical

O grupo de Filosofia da ESMTG celebra, mais uma vez, o Dia Mundial da Filosofia. E os membros do grupo continuam a pensar que a maneira mais adequada de celebrar tal dia é cada um de nós tentar filosofar um pouco, fora dos limites dos programas escolares. Felizmente, matéria de reflexão filosófica fora dos programas é coisa que não falta. Neste ano, os professores do grupo decidiram tentar reflectir filosoficamente sobre... música. Isso mesmo, escrever um texto (é muito importante que os professores escrevam e partilhem o que escrevem) sobre alguma música ou canção à escolha de cada um.

Aqui fica o texto que escrevi. Optei por música clássica como poderia ter escolhido uma canção pop, de heavy metal ou de jazz. Não porque considere esse estilo ou tradição musical superior a outros. São apenas diferentes. E ainda bem para quem aprecia realmente música. 

SEPTEMBER

RICHARD STRAUSS

Que relação há entre filosofia e música? Parece óbvio que a música não tem conteúdo filosófico: ela não responde a problemas filosóficos, não apresenta teses nem argumentos e muito menos esclarece os conceitos que usamos para pensarmos sobre o mundo. Isso é mau? Não, desde que seja boa música.

Todavia, determinar o que faz a música ser boa já é uma questão filosófica. Podemos não aprender filosofia ao ouvir música, mas a música pode dar muito que pensar aos filósofos. Mesmo que não haja música filosófica, a filosofia da música está de saúde e recomenda-se. Dos muitos problemas filosóficos que se colocam acerca da música, um dos mais intrigantes é o da relação entre a música e as emoções, que é conhecido como «o problema da expressão musical».

A relação entre música e emoção é demasiado óbvia, levando muitas pessoas a concluir que a música é a expressão de emoções. Coisa estranha, pois as emoções envolvem estados psicológicos e a música é composta por nada mais que sons. Só seres sencientes, com uma mente, podem sentir emoções. Portanto, só seres sencientes podem exprimir emoções, dado que exprimir algo é exteriorizar o que se encontra lá dentro. Dizer que os sons de uma música exprimem emoções é como dizer que os espinafres sentem inveja dos pepinos. A música — como os espinafres — não sente seja o que for; quem sente são as pessoas que a apreciam. Por isso, alguns filósofos defendem que a música não exprime emoções, mas antes causa (ou suscita, ou provoca) em nós emoções: de tristeza, alegria, euforia, tranquilidade, arrebatamento, paixão, etc. Assim, a música não pode literalmente ser triste, nem alegre, nem eufórica, etc.; as pessoas é que podem ficar tristes, alegres, eufóricas, etc., quando a ouvem.

Mas como acontece tal coisa? Isso levanta, por sua vez, novas questões não menos difíceis, que não cabe aqui expor. Fico-me com a minha teoria preferida, sem a explicar: a música não exprime emoções, nem causa em nós emoções; ela pode muitas vezes representar emoções. Como o faz? Resumidamente: a sequência de sons de uma música está concebida de modo a criar certas expectativas nos ouvintes, as quais podem ser satisfeitas, frustradas ou adiadas parcial ou totalmente, criando neles certos estados psicofisiológicos de tensão, relaxamento, suspense, ansiedade, surpresa, resolução, choque, etc., idênticos aos que sentimos quando estamos tristes, alegres, surpreendidos, eufóricos, etc.

Nem toda a música o consegue fazer com sucesso, mas há algumas que fazem de nós, ouvintes atentos, o que «querem». É, pessoalmente, o caso de September, uma das emocionantes Quatro Últimas Canções (Vier Letzte Lieder), escrita em 1948 pelo compositor alemão Richard Strauss. As quatro canções são provavelmente das canções mais belas jamais escritas e são um comovente testamento musical do genial compositor alemão, que viria a morrer um ano depois de as ter composto.

Escolhi September como poderia ter escolhido qualquer das outras três, em especial Beim Schlafengehen (Indo dormir) ou Im Abendrot (No Crepúsculo). September é uma canção para soprano e orquestra, baseada num poema de Hermann Hesse.

Para usufruir de toda a riqueza emocional de September é preciso entregarmo-nos totalmente à sua escuta, pois é incompatível com outras ocupações. Ouvir esta música enquanto se faz outras coisas é maltratá-la. E algo maltratado é sempre algo desagradável. Assim, recomendo ao leitor destas palavras que não tente ouvi-la se estiver com pressa; nem sequer quando está à espera que o tempo passe. Não, ela tem de ser ouvida com a mente completamente limpa e disponível. Ela precisa da nossa mente aberta para entrar e a preencher totalmente. Entrar no seu universo é entrar num universo exclusivo, e isso impõe certas condições. 
  
Uma vez disponíveis para ela, o que tem para nos dar? Não se espere um festival patético de emoções nem dores de alma bacocas. É tudo muito sereno, subtil e contido, mas intenso e sugestivo na sua contenção.

A canção abre com as cordas e sopros da orquestra de forma aparentemente hesitante, tornando-se súbita, mas também docemente, mais afirmativa. Começa, então, o soprano: 

O jardim está de luto.  
A chuva cai fria sobre as flores.  
O Verão estremece em silêncio, 
aguardando o seu fim. 

A melodia é encantadoramente sinuosa e imprevisível, enquanto as cordas da orquestra se desdobram nos seus diferentes naipes e timbres, em harmonias subtilmente caprichosas: violinos, violas e violoncelos parecem divergir harmoniosamente para, inesperadamente, se voltarem a encontrar.

De uma forma mais assertiva, mas ainda tranquila, surgem os versos da segunda estrofe, com sopros de flautas como que escondidos por detrás da paisagem orquestral: 

Douradas, folha após folha caem  
do alto pé de acácia.  
O Verão sorri, surpreso e lânguido,  
no sonho moribundo do jardim.

A melodia do soprano muda de rumo no início do terceiro verso (Sommer lächelt / O Verão sorri), criando um momento de pura e inesperada felicidade auditiva. A concluir a segunda estrofe, somos mais uma vez surpreendidos com o envolvente percurso melódico de uma orquestra luminosa e colorida. 

Surge a terceira estrofe. A voz flutuante do soprano canta:

Muito tempo ainda junto às rosas  
ele se detém, aspirando ao repouso.  
Lentamente ele fecha  
seus olhos cansados. 

A palavra Langsam (Lentamente), com que se inicia o terceiro verso, é cantada muito lenta e gravemente, transportando-nos devagar até nos fazer sentir como que a levitar. O sentimento de paz e tranquilidade é simplesmente indescritível. Mas, enquanto a última sílaba se vai lentamente desvanecendo na voz do soprano, eis que surge sorrateiramente, a rematar, o som quente, calmo e reconciliador de uma trompa, como que a afagar-nos com os últimos raios de sol do Verão que se despede. Quase paramos de respirar. Isto dá cabo de uma pessoa! É altura de limpar discretamente o canto do olho.

Talvez não me tenha emocionado, mas pareceu mesmo que sim.


Não faltam gravações desta obra-prima da música do século XX (e não só), interpretada pelos mais variados sopranos e com orquestras dirigidas por outros tantos maestros. Já ouvi muitas, mas nenhuma me satisfaz tanto como a gravação da Philips, com o soprano Jessye Norman e com a Gewandhausorchester Leipzig, dirigida por Kurt Masur.