Tropecei mesmo agora com o texto que escrevi para o Dia Mundial da Filosofia de 2008. Ainda me lembro bem da conversa que deu origem ao texto. E, de vez em quando, ainda me cruzo na rua com o colega de Matemática, há muito reformado, que teve essa conversa comigo.
Aqui fica o texto.
Nunca mais me esqueço do que, há muitos anos, um colega
mais velho de Matemática, entretanto reformado, me disse na sala de professores. Além do seu cachimbo — nessa altura ainda se fumava nas escolas —, esse colega era conhecido por assumir frequentemente uma atitude intelectualmente provocadora
e até politicamente incorrecta, como agora se diz. Estava, então, eu a
lamentar-me baixinho pelo facto de tantas pessoas pensarem que os filósofos são
aqueles que procuram saber tudo sobre coisa nenhuma quando o colega, que ainda mal conhecia, se virou para
mim e disse: «olha lá, pá, ainda não cheguei a perceber se tu és dos padres,
dos pseudo-revolucionários ou dos poetas lunáticos.»
Fiquei
intrigado com o comentário dele e perguntei o que queria dizer com aquilo. «Ora,
voltou ele à carga, todos os professores de Filosofia que conheci ou pareciam padres
ou pseudo-revolucionários de esquerda ou tolinhos armados em poetas lunáticos.» Achei
a generalização algo abusiva, mas quis saber como caracterizava ele cada um
desses grupos. A resposta foi, mais ou menos, nestes termos: «os padres ensinam
filosofia como se fosse catequese e têm aquele ar muito cinzentinho; os pseudo-revolucionários de esquerda não estão
interessados em ensinar seja o que for, mas a levar a rapaziada a mandar bocas contra o sistema; os pseudo-poetas são aqueles que, sem paciência para raciocinar disciplinadamente, querem é liberdade para dizer a primeira parvoíce
que lhes passe pela tola.»
Penso
que o comentário do colega foi injusto, pois felizmente não se aplica a muitos professores
de Filosofia. Mas, ainda assim, não deixou de me fazer pensar. A verdade é que
ele estava a tentar denunciar aquilo em que a filosofia não se pode tornar e
que, a ser assim, a tornaria dispensável. O colega queria, no fundo, protestar
contra a ideia de que a filosofia é um conjunto de preceitos que se transmitem
dogmaticamente (os padres); ou um gesto de pura contestação, seja
contra o que for (os revolucionários); ou ainda um pretexto para cada um
exprimir o que lhe vai na alma, seja lá isso o que for (os poetas). Sem
desprimor para os verdadeiros padres, revolucionários e poetas.
Ora
bem, esta ideia não é totalmente uma invenção dele. A verdade é que a tentação para muitos
de nós santificarmos ou idolatrarmos os nossos filósofos preferidos pode
fazer-nos deslizar facilmente do campo do exercício crítico que caracteriza a
filosofia para o campo da catequese quase religiosa. Assim como é fácil ser
impaciente e criticar sem antes ter compreendido, ou confundir a ausência de
dogmas com a livre expressão de sentimentos e o reino do vale tudo. A filosofia
não é religião, não é política e não é poesia. A filosofia ocupa-se dos seus
próprios problemas, apesar de alguns deles serem acerca da religião, da
política e da poesia. E ainda bem para a filosofia, para a política e para a
poesia que é assim.
É
certo que estes domínios por vezes se contaminam, tal como se pode misturar
água com café. Mas, tal como a água não passa a ser café e o café não passa a
ser água, também a filosofia não passa a ser poesia nem a poesia filosofia. E também
não é de estranhar que a melhor filosofia se manifeste na discussão directa com
os filósofos, pois afinal são eles os profissionais do ofício, os que mais
treinados estão para formular correctamente e discutir criticamente os
problemas filosóficos.
A
filosofia não precisa de se tornar literatura, poesia ou outra coisa qualquer
para ter dignidade. Só quem não vê valor intrínseco na filosofia precisa de o
ir buscar a outro lado. E a literatura e a poesia também não precisam da
filosofia para nos deleitarem. Seria tudo muito mais pobre e desinteressante se
não fosse assim.
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