Miguel Granja, professor da ESMTG
Alguns alunos das minhas turmas do 11º ano manifestaram interesse em discutir um dos textos escritos por outro colega, professor de Filosofia, em resposta a uma questão filosófica que lhe foi colocada, no âmbito da comemoração do dia mundial da filosofia. A questão está formulada no título desta posta e a resposta do professor Miguel Granja está abaixo. Concordam? Porquê?
Hobbes Como Condição de Possibilidade de Kant.
Entre a desonra e a guerra, escolhestes a
desonra e tereis a guerra
Winston CHURCHILL
A dolorosa história da Segunda Guerra Mundial e, em particular, a nossa experiência com o nazismo deviam ter acabado já, de uma vez por todas, com a argumentação pacifista segundo a qual não há «guerras justas». Infelizmente o debate permanece vivo, cobrindo-nos de ridículo e de falência moral. Talvez devêssemos colocar a pergunta do avesso, alterando-a apenas ligeiramente: Será legítima uma paz falsa e injusta para evitar a guerra? A intemporal frase de Churchill que uso em epígrafe é, em si, todo um tratado de filosofia política e foi dirigida, como sabemos, ao pacifista Chamberlain acabadinho de alcançar o pacifista Acordo de Munique, em 1938, com Hitler. Como nos ensinou (e temo que tenha já deixado de nos ensinar) esse vergonhoso episódio pacifista, a paz desejada, infelizmente, não se realiza só porque a desejamos. A paz, tal como a guerra, faz-se. E é um erro pensar que a paz se alcança só porque não se faz a guerra, como se a paz fosse uma consequência natural e lógica do fim da guerra. Não raro, a paz a todo o custo tem um custo demasiado elevado. Custou parte da Checoslováquia, desde logo, aos checoslovacos em nome da nobre vontade de paz dos franceses e dos britânicos: e a vontade de paz de uns é a anexação e opressão dos outros. Portanto, quando a França e a Grã-Bretanha querem a paz com Hitler, quem sofre com isso são os checoslovacos. Em 1939, Hitler, desrespeitando o tratado, invade o resto da Checoslováquia.
Isto devia ensinar-nos que estamos acostumados a pensar que o contrário da guerra é a paz e que essa é, porém, uma ideia errada. O contrário da guerra é, muitas vezes, a injustiça, a repressão, o genocídio, a cumplicidade, e só a guerra, e não a «paz», pode pôr-lhes cobro. O recurso à guerra teria sido desejável para acabar com o genocídio no Ruanda em 1994 e foi esse recurso à guerra, por parte da NATO, em 1999, que acabou com o genocídio em curso por parte de Milošević. Mas, para isso, foi preciso o hobbesiano Clinton fazer o trabalho sujo que a kantiana Europa não foi capaz de fazer, mesmo às suas portas. Em nome da paz, claro. Porque a guerra é sempre estúpida e injusta.
Convém talvez não esquecermos que a primeira «manifestação global» do século XXI, com milhões de pessoas nas ruas de todo o mundo, não foi em 2001, por causa do 11 de Setembro: foi em 2003. Por causa da iminente guerra dos EUA no Iraque. Portanto, porque é preferível manter o povo iraquiano brutalmente oprimido por Saddam Hussein do que fazer a guerra. Como se aqui, mais uma vez, o contrário da guerra fosse a paz. Em 2003, regressámos, em rebanhada global, ao nosso Momento Checoslovaco de 1938. E não temos, parece-me, cessado de regressar a 1938. E é tão confortável ser Kant quando temos Hobbes a guardar-nos a porta de casa. E, no entanto, tão hipócrita. Porque há alturas em que só podemos permanecer kantianos com a ajuda de Hobbes. Eu pelo menos, não gosto de ser ingrato em relação àqueles bravos rapazes que, arriscando a sua vida lá longe, me guardam o sono todas as noites.
Miguel Granja